Capítulo 7

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O amargor resultante de minha conversa com Amaryllis permaneceu comigo por muitos dias. E foi tão intenso naquela tarde que, pela primeira vez, não tive vontade de ver Matilde. Permaneci em meus aposentos toda a noite, o pensamento fixo nas palavras de minha amiga de infância. No ódio agudo que suas últimas palavras desferiram. Como isso podia partir de alguém que havia usufruído das benesses de minha família por toda a vida? E que ódio era aquele que a fazia erguer a voz para blasfemar o próprio pai?

Vaguei por minha cama horas a fio e já ouvia o canto do galo quando, finalmente, meu cansaço venceu as dúvidas e adormeci. As preocupações, no entanto, infiltraram-se no meu descanso e o sonho resultante foi tão claro e cru, que acabou por determinar minhas ações futuras.

Sonhei que invadia o gabinete de meu pai e o exortava a uma conversa urgente e particular. A sós com ele, narrava-lhe, detalhadamente, a conversa de Mestre Renan com o soldado da guarda pessoal e também minha conversa com Amaryllis. Sua expressão era preocupada e, ao fim do relato, ele me beijava com afeição e agradecia a fidelidade. Depois saía. No dia seguinte a esse encontro acordo e, ao olhar pela janela de meu quarto, vejo os corpos de Amaryllis e Mestre Renan pendendo de um cadafalso, enforcados perante a população local. Com dizeres severos, um arauto lê a mensagem de meu pai, informando que não tolerará nenhum tipo de conspiração, ainda que essa nasça em sua própria casa, comandada por pessoas de sua estima. Que aquelas mortes fossem tomadas como exemplo.

Assisto a cena consternada, sabendo que sou responsável pela morte de duas pessoas amadas, mas me consolo, dizendo que eram traidores do reino. Então, deixo o quarto e ando em busca de meu pai pelo castelo. Os corredores, no entanto, tornam-se paulatinamente estreitos e sombrios. O medo me domina completamente e sinto uma urgência, cada vez maior, de encontrar meu pai. Chego tarde, no entanto: ele está em um dos calabouços e é assassinado por um homem encapuzado. Ao perceber minha presença, o homem se vira e me encurrala contra uma parede. Seus olhos são vermelhos e com uma expressão insana. Ri, ensandecidamente, e depois me agradece por tê-lo ajudado: ao fazer com que meu pai pensasse que Amaryllis e Renan eram os traidores, deixei o caminho livre para que ele usurpasse o reino.

Acordei com o sol já alto, o corpo inundado de suor. A paisagem na janela de meu quarto permanecia calma, como sempre fora. Nenhuma revolução estava a caminho.

Minhas aulas nas semanas seguintes foram tensas. Depois do que ouvi, não confiava mais nas informações de meu tutor. Mas temia deixar transparecer minhas desconfianças. Sem a presença de meu pai, minha segurança residia na aparência de normalidade, deixá-lo seguir tranquilamente com seus planos. Mantive Mestre Renan sobre intensa vigília, no entanto. E ganhei o hábito de questioná-lo, detalhadamente, em nossas aulas. Se não serviu para descobrir alguma conspiração, ao menos me deu o hábito da dúvida.

Coroando tudo isso, as mortes de meu sonho me acompanharam, sinistramente, por todos os dias que antecederam a volta de meu pai. E nem mesmo os braços de Matilde puderam apagar a aflição que isso me causava. Então, quando numa noite chuvosa, ouvi o tropel dos cavalos se aproximando dos portões, a sinistra visão de meu pai vestido em um traje negro, tão nitidamente semelhante à roupa que usava em meus sonhos, me fez optar pelo silêncio.

Foi nesse confuso estado de espírito que, semanas depois, o aniversário da morte de minha mãe me alcançou. Duas semanas antes já era possível perceber a tristeza estampada no rosto de meu pai, enquanto ordenava os preparativos para o festival fúnebre. Sua tristeza servia para aumentar a minha. Imaginava aquele homem forte, escondendo a dor pela perda de sua amada. E minha dor por Amaryllis voltou, secretamente, a meu coração: reconhecia em meu pai minha própria dor pela perda da mulher amada. Numa noite quente o encontrei sozinho no gabinete, o olhar pensativo, observando as estrelas além das montanhas. Pigarreei sem jeito, para me fazer notar, então parei na sacada a seu lado e compartilhei de seu silêncio.

Aléssia || HISTÓRIA COMPLETAOnde histórias criam vida. Descubra agora