Capítulo 22

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Naquele dia, o amanhecer demorou como nunca, prolongando minhas horas de terror. No profundo escuro silencioso da floresta, minha vida desfilava à minha frente qual uma praga incurável. Como tempero extra, vez por outra, surgiam imagens horrendas de meu pai e essa tal Casa de Mulheres. Como se desenterradas por algum gênio maligno, as lembranças de viagens de meu pai começaram a retornar, mesmo as mais antigas, em meus primeiros dias de infância. E todas elas vinham acompanhadas da mesma pergunta: para onde ele ia e o que fazia nessas viagens?

Meu pesadelo acordada. Meus monstros internos estavam todos despertos, não precisavam mais do anonimato do sono, espreitavam-me agora de fora e reviravam-me do avesso, sem que houvesse um despertar como salvação. Na verdade agora eu estava desperta e esse era meu inferno.

As lembranças não me abandonavam. Vinham, emboloradas, barrentas, atirar em minha cara as verdades que eu nunca quis ver. Mas no meio de todo aquele lodo desesperador, uma flor inesperada dominou a paisagem. Sem que eu soubesse como, nem de onde tinha vindo, lembrei da sensação de estar no colo de minha mãe, observando meu pai partir com seu séquito militar. Lembrei do calor de seu corpo, do carinho com que me aninhava. Lembrei inclusive dos músculos tensos de seu braço e do seu olhar raivoso para meu pai.

Nunca havia recordado o rosto de minha mãe e agora ali estava ele, completo em meu campo de visão. Era, como o meu, um rosto quadrado de ossos largos, mas com um nariz um pouco mais largo, marcado por uma forte inclinação para baixo, enquanto o meu é reto. Para meu desespero tinha exatamente os meus olhos, naquele estranho tom de nuvem em dia de chuva, mas guardando ainda uma tonalidade de céu azul. Seus cabelos eram longos e desciam em anéis avermelhados. Tinha o olhar severo, mas havia uma doçura qualquer em seu jeito. Era bonita de um jeito marcante, aquela beleza que você não esquece mais quando encontra. Seu porte era altivo e nobre e possuía o sorriso mais iluminado que já vi.

O amanhecer venceu as folhas e me resgatou das sombras internas. Olhando para cima acompanhei a chegada da luz, a maneira como paulatinamente cada folha se iluminava, a luz filtrando seu caminho esverdeado. Retirei da sela de Amora dois nacos de peixe e os coloquei para assar.

— Que cheiro bom. Estou faminta.

— Bom dia, Diana. Espero que tenha conseguido descansar.

— Descansei, sim, você consegue milagres em acampamentos, a sua cama improvisada é melhor do que a que eu tive a vida toda.

Não quis nem imaginar como seria a outra cama. Era estranho perceber que a vida não era mesmo confortável para todos.

— O lago é longe daqui?

— Não, poucas jardas a frente. Quer ir lá?

— Gostaria de me lavar, se não tiver problema.

— Nenhum problema. Parece um lugar agradável para banho, inclusive. É só seguir nessa direção, não tem como errar.

Minha nova amiga dobrou as cobertas com cuidado e as colocou na sela de Amora, exatamente como eu fazia. Sorri ao perceber o cuidado dela em me imitar. Em seguida nos sentamos para nosso desjejum: peixe assado com ervas e alguns goles de água.

— Nada mal pra quem achou que iria morrer de fome – disse Diana, enquanto lambia os beiços. Eu também me regalava com a refeição, o estômago dolorido recebendo a comida com alegria. Em seguida comecei a amortecer o fogo, enquanto a garota se dirigia ao lago.

Os passos de Diana silenciaram de repente ao invés de se afastarem. Algum aspecto meu, profundamente treinado para guerra, percebeu isso, apesar de eu estar concentrada com a fogueira. Parei o que estava fazendo e apurei o ouvido. Silêncio total por alguns segundos, e de repente a voz de Diana, baixa e trêmula, chamava meu nome. Saquei a faca e caminhei cautelosamente até encontrá-la, paralisada, olhando uma marca no chão. Pegadas de lobo. Lembrei-me de meu pesadelo com um péssimo pressentimento.

Aléssia || HISTÓRIA COMPLETAOnde histórias criam vida. Descubra agora