Capítulo 46

174 37 3
                                    

O pôr do sol escorria pelas nervuras do Monte Vermelho. A paisagem, somada ao aroma de alecrim e rosas, provocava-me uma nostalgia cortante. Meu corpo dolorido recebia de bom grado minha antiga cama, e tudo em volta dava-me a sensação de ter acordado de um longo sono. Estava novamente em meu quarto e com guardas a minha volta, mantida prisioneira por meu amoroso pai. Não fosse pela ausência de Lara, eu duvidaria de tudo o que havia vivido nos últimos dois anos.

Lara.

Meu quarto era vazio e frio sem ela. E estar ali aumentava o ódio que agora sentia por meu pai. Ao menos esse favor ele me fez: deu-me um motivo real para odiá-lo.

Pela passagem do sol na janela, calculava que estava em meu quarto há cerca de doze horas. Agripina trouxera-me as refeições e, periodicamente, outras criadas arrumavam algo para fazer em meu quarto. Havia um sentimento de calma, de vida retornando à normalidade. As meninas mais antigas, habituadas comigo, expressavam suas saudades e alegria em me rever. Procurei ser gentil com todas, e creio que minha tristeza fosse indisfarçável.

Minha última refeição naquele dia foi javali no molho de maçã. Meu prato predileto nunca foi tão amargo. Havia também uma jarra de suco de maçã, do qual tomei um copo.

Quando meu pai chegou, aproximadamente uma hora depois de me servirem, a comida estava intacta sobre a mesa. Beijou-me na testa, como se eu fosse ainda sua pequena criança, depois se sentou na beira da cama e acariciou meu rosto. Estava calmo e carinhoso, conforme minhas lembranças mais antigas. O pai que eu tanto amara e em quem confiara por toda minha vida. Não o Rei Aran, o monstro que eu descobrira recentemente e que, na última noite, havia me dado uma amostra de sua fria perversidade. O contraste era tão medonho, que eu me sentia inclinada a pensar que aquele homem gentil, amorosamente sentado à cabeceira de sua filha, era uma pessoa a parte do monstro assassino que dizimava o reino com sua fúria incontrolável.

— Espero que esteja mais descansada, meu amor. Mais algumas horas e tudo estará terminado, confie em mim.

Apesar da doçura em sua voz, senti um medo gélido. Mas não disse nada.

— Lastimo que as responsabilidades de nosso clã lhe pareçam tão pesadas. A culpa é minha por tê-la poupado demais na infância. Não é à toa que meu pai dizia que o amor é a pior fraqueza de um homem.

— Meu avô dizia isso?

— E estava certo. Você aprenderá com o tempo, Aléssia. Mas espero que não lhe seja uma lição muito amarga.

Estava habituada a pensar em meu avô como um sujeito carismático e bondoso. Agora percebia que, provavelmente, era tão bondoso quanto meu pai. Minha família era uma maldição.

— Eu lhe trouxe um presente, Aléssia, espero que goste — e ao terminar a frase, bateu palmas — Ela irá lhe ajudar com os cuidados pessoais. Eu volto em algumas horas e quero encontrá-la pronta. Mas nada impede que antes você aproveite os... dotes... de Irina, e relaxe um pouco.

Irina era uma jovem ruiva de rosto triangular e uma cintura estreita que acentuava o volume do quadril. Estava vestida de maneira a enaltecer as curvas de seu corpo e era, sem dúvida, escolhida a dedo para aquilo que meu pai pretendia. Ele se aproximou da jovem e, com um sorriso deliciado, acariciou-lhe o rosto.

— Uma beleza, não acha? É estrangeira. Foi capturada do lado de lá do Monte Vermelho e fala muito pouco nossa língua. Mas tenho certeza de que você será uma ótima professora. Lembro-me do quanto você era curiosa sobre o que havia do lado de lá da montanha. Creio que Irina terá enorme prazer em lhe contar. Aproveitem bem as próximas horas. Quando eu voltar, quero que esteja lavada e usando suas roupas cerimoniais.

Aléssia || HISTÓRIA COMPLETAOnde histórias criam vida. Descubra agora