O conforto de enxergar surtiu efeito apenas nos primeiros minutos. Lentamente fui arrastada novamente para meus delírios, a Pedra urrando por minha presença. E não havia nada que eu pudesse fazer além de resistir. Sozinha.
A contagem de dias se perdeu lá pelo nono prato de comida. Com luz ou sem, minha vida no cativeiro era uma monótona repetição de dois instantes: estar comendo, estar aguardando a comida.
Tive muitas lembranças, pensamentos, sonhos, devaneios. Dos comuns e simplistas aos mais absurdos. Confundir o catre do cativeiro com minha cama no castelo se tornou lugar comum. Sentir na pele as carícias de Lara ou de Matilde, também.
Certa manhã, dei por mim contemplando minha imagem no Lago Espelhado. Estava abatida, visivelmente mais velha, os cabelos maiores do que o de costume caindo pelo rosto. Então, como por encanto, surgiu atrás de mim uma figura esguia com um ar muito familiar. Olhei seu reflexo na água e aos poucos reconheci os olhos, tão parecidos com os de Alexandra. Depois vi seus lábios formarem meu próprio sorriso. Seus cabelos negros desciam em ondas pelos ombros. Nunca tinha estado tão nítido para mim o quanto nos parecíamos. Meu coração se encheu de alegria, orgulho e saudade. Levantei-me devagar, e minha mãe me abraçou com ternura.
Em poucas palavras, Maura O'Líath me pediu paciência e força. Alexandra vai conhecer sua alma, vocês serão grandes aliadas. Mas no instante seguinte tudo se tornou nublado, escuro, como se estivéssemos no prenúncio de uma tempestade. As árvores ficaram turvas e perdi o lago de vista. Assim, num passe de mágica, já não estava mais ali, já não era a floresta em seu caráter remanescente, mas seu próprio centro, seu cerne, seu coração energético: o Bosque Sagrado.
A Pedra gritava por mim. Não, nada audível. Mas a maneira como pulsava e brilhava tinha, para mim, o caráter imperativo de um chamamento. Por muito pouco não me ajoelhei, complacente – qualquer coisa que me livre de todo esse sofrimento, pensei.
— Sua vida de volta, Aléssia... não é isso o que você quer?
Sim, era. Proposta tentadora. Mas longe, na memória, a voz de minha mãe: seja forte.
Recuei dois passos e teria recuado mais, não fosse uma fisgada no braço esquerdo. Do não sentir nada à dor absoluta, foi apenas um momento. A voz da Pedra me exortava à ação.
— Apenas um gesto. Estique seu braço. Nunca mais haverá dor alguma. Nunca mais nenhum tormento. O mundo todo estará a seus pés. De você serão as decisões, seu – e apenas seu – será o Poder. Tudo isso ao alcance de suas mãos, Aléssia. Toque-me!
— Não! — rosnei levemente, mal tendo forças para abrir os lábios.
— Vamos parar logo esse sofrimento... toque-me.
— Não! — disse, dessa vez com mais força e decisão.
— Deixe de tolice, Alés...
— NÃO! — berrei a plenos pulmões, usando de uma força e energia que não sabia de onde vinha.
Já me preparava para urrar, com medo de fraquejar diante daquela voz barrenta, mas ao invés da Pedra ouvi um uivo e, logo em seguida, um lobo interpunha-se entre a Pedra e eu. Como se fosse possível uma rocha temer um animal, a Pedra silenciou. Uivando, o animal me olhava. A dor no braço me dominava completamente, e talvez por isso eu seja capaz de jurar que ouvi o lobo dizendo, em voz quase humana, vá embora, fuja enquanto é tempo. Não sei ao certo como fiquei em pé e andei alguns passos adiante. Mas tão logo saí do círculo de influência da Pedra, já pude correr livremente. Por pouco tempo, no entanto: minhas pernas encontraram a ternura do solo da Floresta Escura e meu rosto, contorcido pela dor, olhava-me no fundo do Lago Espelhado.
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Aléssia || HISTÓRIA COMPLETA
FantasiaO destino de Aléssia é libertar seu reino das garras de um tirano. Mas para isso, terá que matar a pessoa que mais ama: seu pai. 👸 fantasia ⚔️ aventura ❤️ romance 🔥 erotismo 🌈 protagonista lésbica 𝐏𝐮𝐛𝐥𝐢𝐜𝐚𝐝𝐨 𝐞𝐦 𝟎𝟑/𝟏𝟎/𝟐𝟎𝟐𝟏 �...