Capítulo 47

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E então eu pertencia à Pedra.

Sei que meu pai cortou meu pulso com a ponta de Serbal. Sei disso porque conheço o ritual. Mas não senti nada. Ao fechar os olhos, a consciência do local desapareceu. Não havia mais Lara, nem remorso, nem meu pai, nem espada, nem Bosque, nem Pedra.

Havia apenas luz e uma coruja. Mas quando pensei a respeito, a luz se condensou em um campo extenso num ensolarado dia de verão. A coruja estava à minha frente, no único galho da única árvore de toda a paisagem. E levantou voo quando me aproximei.

Voou para o Norte e, sem nada melhor para fazer, eu a segui. No início era apenas uma caminhada, mas quando me dei conta corria por um gramado que se tornava mais espesso. Algum tempo depois meus pés lutavam contra ramos que dificultavam a passagem e, sem saber como, embrenhei-me em uma pequena floresta que antes simplesmente não estava ali.

A coruja mantinha seu voo para o Norte. Para o Norte, sempre para o Norte. E quando a vegetação se tornou tão espessa que eu já não podia mais saber se era dia ou noite, pousou em um gigantesco freixo.

As raízes da árvore eram esplêndidas. Seu tronco tinha bem mais de um metro de diâmetro. A copa perdia-se em alturas invisíveis e sua casca era espessa como uma muralha de escudos.

A ave olhava para baixo, para as raízes. Olhei-as com atenção e percebi uma abertura grande o bastante para uma criança entrar. Ajoelhei por instinto e, enquanto analisava o buraco, senti um empurrão. Deslizei por um pequeno túnel de barro e me vi na antessala de uma caverna. Parecia iluminada por velas, embora não pudesse vê-las. Ouvi o pio da coruja muito alto, atrás de mim, mas quando me voltei para o som, vi minha mãe.

Usava um lindo vestido branco, assim como brancas eram as flores que ornamentavam seus cabelos cor de fogo. Sorriu ao me ver, mas havia lágrimas em seus olhos. Chamou-me com um gesto e me acolheu em um abraço que trouxe para fora toda a dor que eu sentia. Chorei em seus ombros por sua morte quando eu tinha apenas três anos. Chorei pela morte do pai amoroso que eu conhecera em minha infância. Chorei pela morte de Lara, que perdeu a vida apenas por me proteger. Chorei pela morte de quem eu era porque, sabia, a partir daquele instante não teria mais a liberdade de minha alma.

Maura secou minhas lágrimas com beijos nos meus olhos. E então eu vi.

Vi o Bosque e vi a Pedra. E com os braços estendidos sobre Ela, um homem e uma mulher. Ruivos como eu. Altos como eu. Nobres como eu. O homem usava minhas cotas de malha e tinha Brenda em sua cintura. A mulher usava minha túnica cerimonial e, de seu cinto de corda, pendia meu punhal. A espada de meu pai, Serbal, colhia-lhes o sangue como oferenda. Um filete de sangue escorreu do braço de cada um e gotejou sobre a Pedra. E assim começou o rito.

Da Pedra ergueu-se um homem e dirigiu-se à mulher. Tomou-a pelo braço e levou-a para dançar. Sussurrava palavras doces a ela e, mesmo distante, eu podia ouvi-las: você terá todo o ouro que quiser. Será eternamente bela e desejada. Nada a aborrecerá. Seus problemas serão por mim solucionados.

Suas palavras soavam em meus ouvidos como uma música angelical. A mulher deitou o rosto sobre os ombros do homem, que era branco como cal e calvo como uma rocha. Mas quando a dança se tornava mais sensual, o outro homem retirou Brenda da cintura e atacou o casal.

O par se afastou da lâmina, a mulher recuando assustada. Mas não houve briga. Os dois homens olharam-se em desafio e o calvo sussurrou uma proposta tentadora. Você terá poder. Todos se curvarão a seus pés. Terá em sua cama a mulher que desejar. Será temido e respeitado, conquanto que siga meus conselhos. Eu lhe guiarei. Eu lhe mostrarei como ser Rei dos Reis. Seja meu servo e todos os homens serão seus escravos.

Aléssia || HISTÓRIA COMPLETAOnde histórias criam vida. Descubra agora