Capítulo 28

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— Quando Mestre Renan me deu o punhal eu era muito pequena. Mas agora... lembro perfeitamente de ele ter dito "punhal sagrado", acrescentando que aquilo não significaria nada pra mim naquele momento, mas que no futuro eu compreenderia. Ele estava muito mais preocupado em me fazer entender que meu pai jamais poderia me ver com o punhal. Não sei por que decidiu me entregar isso naquela época, por que não me esperou crescer um pouco, pelo menos. Nunca mais nos falamos a respeito, nem mesmo quando comecei a usar o punhal no meu cinto, à mostra de todos.

— Seu pai nunca percebeu?

— Percebeu, claro. Mas o convenci de que ganhei o punhal em uma disputa com um cavalariço. Sempre me envolvi em disputas por prêmios, e as ganhava com facilidade, então foi fácil fazê-lo acreditar nisso. Quando criança, usava o punhal escondido entre as roupas, mais ou menos como você parece usar o seu. Mas quando entrei na adolescência, o desejo de tê-lo ao alcance das mãos ganhou força, se tornou uma tentação. Desde que o ganhei aproveitava qualquer oportunidade para admirá-lo, e era como se falasse com minha mãe através dele. Usá-lo no cinto era como andar de mãos dadas com ela. Dava-me a agradável segurança de ter minha mãe ao alcance das mãos. Não sei se você consegue imaginar o quanto isso é importante pra mim.

Alexandra guardou seu punhal e cerrou os dedos sobre o meu enquanto me olhava intrigada.

— Sei o quanto é importante o punhal de minha mãe para mim. E o que você fala se parece muito com o que sinto. O que eu não sei, Aléssia, é se posso confiar em você.

Talvez tenha sido aquela a primeira vez em que nos olhamos sem medo, com sinceridade.

— Gostaria de ter uma resposta, mas o fato é que me pergunto exatamente a mesma coisa. Posso confiar em você, Alexandra? Posso confiar na mulher que meu pai me ensinou a odiar com todas as forças?

— Imagino o que seu pai tenha lhe dito a meu respeito. Provavelmente você cresceu ouvindo falar nessa mulher terrível que arma o povo e o coloca contra o benevolente Rei Aran. A mulher que luta para usurpar os bens de sua família e aniquilar os Amaranto, não é?

— Para não faltar com a verdade, serei obrigada a dizer que descobri sua existência há poucos meses. Meu pai sempre me manteve afastada de assuntos polêmicos. Apenas no início desse ano mudou sua tática e me colocou como seu braço direito.

Ergueu a sobrancelha daquele jeito que lhe era característico, pelo que eu já havia percebido.

— Braço direito de Rei Aran? A situação é um pouco pior do que eu imaginava. Tinha esperanças de encontrar provas de sua inocência, Aléssia. A filha de minha tia Maura sempre foi alvo de meus melhores pensamentos e do mais profundo carinho, mesmo me sendo impossível manter contato. Adoraria tê-la visto crescer... Mas já estou habituada com a dureza da realidade e saberei ser forte quando precisar enfrentá-la numa batalha de vida e morte.

Apesar da frieza, da postura rígida e quase militar, da maneira agressiva como me tratava, havia algo de humano e cálido naquela mulher. Algo que me inspirava confiança, ainda que não me agradasse admitir.

Não falei mais nada, nem ela parecia disposta a manter o diálogo. Com um grito ríspido chamou o homem que a ajudara a me socorrer durante a crise d' A Marca e, juntos, me escoltaram para um quarto no andar térreo. O cômodo era simples com um pequeno catre, uma cômoda e uma bacia para higiene pessoal.

— Pretendia deixá-la por uns dias no porão como forma de amansar seu espírito. Mas vou levar em consideração a crise que teve ainda há pouco. Mantenha a compressa no lugar, em breve volto para trocá-la.

Saiu rapidamente, não sem antes dar ordens para que redobrassem a vigilância em cima de mim. O que ela não sabia é que eu não tinha nenhuma intenção de fugir, simplesmente porque não tinha para onde ir.

Aléssia || HISTÓRIA COMPLETAOnde histórias criam vida. Descubra agora