Fragmento nº2

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Estava a chover. A noite ainda ia a meio, mas eu já não tinha sono. Detestava aquela casa e detestava muito mais quem vivia nela. Estar ali era como ter um contacto diferente com a morte. Era como se eu também estivesse destinada a desfazer-me em cinzas nas mãos daquela família podre.

O paço era grande. Os Gama, tal como a minha família, eram nobres que se destacaram pelo esforço prestado em nome da Coroa, nas Cruzadas. Com isso, conseguiram merecer um grande patrimônio. Por mais belos que os jardins fossem, o interior causava-me arrepios durante a noite. Não haviam velas suficientes que arrastassem a escuridão dali para fora. Uma triste e mórbida escuridão.

Enrolei-me a um lençol comprido e saí dos meus aposentos com uma vela para iluminar o caminho. Caminhei descalça até ao andar de baixo. Precisava de beber água.

— O que fazeis aqui?

Dei um pulo assim que ouvi aquela voz masculina de quem menos esperava estar ali sentado.

— Vim tomar um copo de água — respondi sem dar muita importância.

— Sem sono? — Insistiu.

— É impossível dormir num sítio como este... Está tão imundo quanto o caráter da vossa família — comentei enquanto observava o teto.

Rodrigo não retribuiu. Limitou-se a observar-me ao mesmo tempo que brincava com uma moeda de ouro. De seguida, deu um pontapé na cadeira à sua frente, fazendo-a afastar-se da mesa.

— Sentai-vos — ordenou. 

Ponderei durante uns segundos olhando para a cadeira e depois para ele. Acabei por ceder. Deixei o copo de água num canto e caminhei até à cadeira de madeira velha. Sentei-me fazendo-nos ficar frente a frente. Esperou um pouco e desenvolveu o assunto.

— Sabeis onde isto vai parar, correto? — Manteve-se estático movendo apenas o olhar. — Sabeis porque ainda estais aqui, certo?

— Ide direto ao assunto, Rodrigo — pedi ligeiramente sem paciência.

— O plano deles é casarem-nos. Eles pensam que a única maneira de chegar a um acordo de paz entre as nossas famílias é o nosso matrimónio.

Gargalhei. Mal tinha aberto a boca, já estava farta de o ouvir.

— Ide dormir, Rodrigo! — Levantei-me e arrumei a cadeira. — As insónias estão a dar cabo do vosso juízo.

— Podeis continuar a fugir da realidade, Anabela — suspirou. — Estais prometida a mim. Não tardará, dormiremos na mesma cama.

— Apenas e somente se estiver morta. Só assim conseguirá pôr as mãos em mim — avisei-o.

— Primeiro: não é em vós que quero pôr as mãos, por mais que o seu peito seja algo tentador — revirei-lhe os olhos. — Segundo: não penseis que o quero de tal forma.

— Não vos preocupais com isso. Não me irei casar convosco. Estou viúva, de luto. Não pretendo me casar tão cedo. Muito menos com um Gama.

— Sabeis algo? Já conheci bastantes mulheres. Mas nenhuma me deu tanto gozo como vós — levantou-se também. — Não sei... É algo na maneira em como acredita que tem voto na matéria que me faz rir e rir cá dentro — ironizou. — É realmente algo engraçado de assistir.

Não lhe respondi. Ignorei-o a ele e àquelas palavras venenosas e saí dali, dirigindo-me até ao quarto na esperança que aquela hipótese não fosse a mais acertada.

Desejo: Fazer-te ficarOnde histórias criam vida. Descubra agora