XXIII

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— Acreditem, foi a coisa mais... marada que já me aconteceu em toda a minha vida — contei ao Diogo e à Alice, enquanto bebia chá e tentava pôr gelo na cabeça.

Um dia tinha-se passado. Depois da luta, levei-nos ao hospital e pedi ao Diogo para ligar a uma ambulância, alegando ter encontrado o Samuel desacordado na rua. No hospital, tentaram convencer-nos a apresentar queixa contra a pessoa que nos "assaltou" e agrediu. A Lúcia não quis apresentar, porém eu fi-lo nas suas costas. Por mais vontade que tivesse de a fazer entender que era o mais correto, não queria arranjar problemas com ela.

A Lúcia, antes de voltar do hospital trocou a roupa que trouxe no dia anterior por um vestido amarelo da Alice que a mesma lhe trouxe ao hospital e passou o resto do dia a descansar no quarto do Diogo, no nosso apartamento. Entretanto, eu e o casal fomos buscar todas as coisas da Lúcia ao hotel e demos o check-out, para ela passar uns dias em segurança em minha casa.

Agora, badalavam as 22h30min, e estávamos os três reunidos na sala.

— Ela parecia bastante indefesa — o Diogo comentou, referindo-se às várias tentativas por parte da Lúcia em se defender.

— As aparências iludem meu amor. — Alice interveio. — Quero conhecer essa poderosa!

Ouvimos um barulho vindo do meu quarto. Eu fui ao corredor ver o que se passava. A Lúcia estava agarrada à cômoda, com uma certa dificuldade em levantar-se.

— O que pensas que estás a fazer? — Ralhei com ela. — Mandaram-te repousar por causa da coluna.

— Isso digo-te eu, e não vês que me safo sozinha? — Lúcia perguntou visivelmente chateada.

— Se não fosse eu, já não estarias aqui — atirei-lhe à cara.

— Fugi uma vez. Poderia fazê-lo novamente — defendeu-se. — Para além disso, tenho fome.

Conseguiu equilibrar-se e caminhou para fora do quarto descalça. A sua cara mudou assim que viu Alice, que também mudou logo a sua expressão sorridente.

— Não... Não pode ser... — Alice disse incrédula, levando uma mão à boca. — É... É ela!! — A loira com os olhos marejados apontou para a ruiva.

A Lúcia não se mexeu. Continuou a olhar para o estado de choque da mulher que estava a alguns metros de si. Fitavam-se como se nada mais existisse no mundo em redor. A recém-casada deixava as lágrimas caírem pela sua face aterrorizada. A outra limitava-se a estar ali, em pé, como se tivesse sido apanhada de surpresa e não tivesse por onde fugir.

— Alice, o que se passa? — O Diogo abanava-a ligeiramente com a mão na coxa para ela sair do estado de choque.

— É ela... — disse num tom baixo e choroso.

Eu e Diogo olhámo-nos e suspirámos. Eu encostei-me à parede cruzando os braços e baixei a cabeça para não assistir àquela cena.

— Alice... — o moreno envolveu a sua mulher com os braços, incentivando-a a ir embora com ele. — Vá, vamos embora... Está tarde e estás cansada, precisas de apanhar ar — disse, enquanto caminhavam lentamente até à porta do apartamento, sem a loira desviar o olhar da ruiva (que também não desviava o olhar dela).

— Mas é ela...! — insistiu visivelmente triste, enquanto atravessava a ombreira da porta, que logo foi fechada pelo Diogo.

A Lúcia abaixou a cabeça ainda a processar o que tinha acontecido. Eu movimentei-me até à sala. Passei as mãos pelos cabelos e suspirei.

— Eu peço desculpa... — encarei-a. — Há uns anos, nós passámos por um mau bocado e ela ficou bastante traumatizada... todos nós, enfim... — caminhei até o sofá maior e sentei-me — mas ela não o consegue controlar... — fiz uma pausa para pigarrear. — Nós nunca mais falámos acerca disso e da... — olhei para ela por não conseguir e não poder finalizar a frase.

— Da pessoa em si... — completou, levantando a cabeça. — Eu consegui perceber... — Caminhou até mim com algum esforço, sentando-se de seguida ao meu lado.

— Esse vestido foi uma prenda dela para a Alice. Que agora é a mulher do Diogo.

— Eles fazem um belo casal! — Tentou aliviar o clima, suscitando um sorriso fraco da minha parte. — Nunca tivemos chance de nos conhecermos propriamente. 

Um silêncio incomodo instalou-se no apartamento.

— Sabes uma coisa? — Perguntei, recebendo uma resposta negativa. — A nossa colega queria que a sua primeira filha se chamasse Luna. Tal como o nome que escolheste para seres apresentada. Parece que o destino é perfeito até mesmo nas suas imperfeições.

— Então parece que eu fui enviada — presenteou-me com um sorriso apagado. — Desculpa, Duarte, mas tenho de te perguntar, ela é...?

— A rapariga da foto, sim. Da família Belmonte, irmã da Leonor Belmonte. Filha do Hugo e da Mónica Belmonte. O que me faz lembrar de uma coisa... — encarei-a. — Quem és tu, Lúcia? Porque é que estás aqui? E desta vez, quero a verdade.

Ela olhou para o chão repreensiva. Pensou o que me iria contar durante um tempo e depois lá ganhou coragem. Levantou a cabeça, olhou-me nos olhos e começou a falar.

— Não sou de Coimbra, não foi de lá que eu vim. Nem eu, nem o...

— Samuel? — Interrompi-a e ela assentiu.

— Nós viemos... — ela fez uma pausa e fechou os olhos, como se não quisesse dizer.

— Diz lá — mandei, chateado por ela me ter mentido. — De onde é que tu e o teu queridinho vieram? — Ironizei.

— Nós viemos... — hesitou. Arrependeu-se. — Esquece, Duarte — desistiu, levantando-se para ir embora. — Não quero falar sobre isto hoje.

— De onde? — Insisti. Não me respondeu, fiquei impaciente. — De onde Lúcia?! — Aumentei o meu tom de voz.

— De Sicília! Ok?! — Respondeu-me no mesmo tom, virando-se para mim.

Encarei-a com um olhar não muito amigável. Custava-lhe muito desembuchar de uma vez?

— Sicília? — Perguntei. Anuiu. — Itália? — Confirmei. Assentiu de novo. — Porque haveria de acreditar nisso? — Testei-a.

— Porque é a verdade, Duarte! — Aproximou-se. — Se não quiseres acreditar, tudo bem! Eu já me arrependi de ter vindo para o Porto de qualquer das maneiras...

Eu levantei-me. Ficámos frente a frente.

— Então sabes onde está a porta — provoquei-a.

— É — concluiu notavelmente chateada com a minha audácia. — Se calhar tens razão.

Caminhou em direção do quarto para se calçar e buscar a carteira. Quando voltou, questionei-a:

— Quantas vezes vais ter de sair para perceberes que vais acabar por ficar? — Abri um sorriso ladino. Ela parou de andar, voltando a encarar-me. — Ora, pensava que já tínhamos ultrapassado essa fase, Lúcia... — Caminhei até ela. — Até porque, refletindo melhor, seria um desperdício. Já tens a minha atenção, aquela que tanto querias. E eu sei que é exatamente isso que te mantém aqui.

— O quê?

— O teu amigo... Ele referiu o meu nome numa conversa vossa. Supostamente, estás aqui por mim. Precisas de algo meu. Tu própria o disseste: "e se não fores o jogador, mas sim o peão?". Daqui até Sicília ainda vão umas longas horas de viagem. Vieste aqui por algum bom motivo. O que me leva a perguntar, o que queres? Viajaste para fugir dele ou tem algo mais que se lhe diga? Algo em que eu estou envolvido? Algo que inclui o Rogério?

A Lúcia suspirou.

— Vim aqui para pedir-te ajuda.

— Pedir-me ajuda para quê?

— Para sair do meu furacão. De vez.

Desejo: Fazer-te ficarOnde histórias criam vida. Descubra agora