XVIII

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Peguei nas minhas coisas e parti para Vila do Conde. Ao chegar à minha antiga casa, não me cruzei com os meus pais. Fui recebido por duas empregadas, mas logo segui caminho.

À medida que me aproximava do meu antigo quarto, apreciava os vários quadros caríssimos pendurados pelo corredor. Em destaque, no final do mesmo, encontrava-se uma janela e, em cima de uma mesa pequena, uma moldura com a foto tradicional de família: os meus pais de pé e eu e o Diogo sentados à frente deles. O meu pai com uma feição séria e postura rígida, a minha mãe um pouco mais sorridente e com as mãos apoiadas no meu ombro direito e no ombro esquerdo do Diogo, que por sua vez tinha uma postura idêntica à minha - visivelmente forçada por estar farto de estar ali.

Não desgostava da minha família. Afinal, era minha. Contudo, toda a sua reputação, história e património foram grandes fatores no desenvolvimento da minha vida e, mais importante, da minha personalidade. Ser o puto rico da escola não é tão bom como se pensa e isso é um dos porquês de ter ido para um colégio. Eu e o Diogo, que está connosco desde os três anos por causa da morte da mãe.

As nossas vidas escolares só começaram realmente a valer quando fomos para o último ano do secundário em Guimarães, de novo para uma escola pública. Passávamos a semana em casa dos Belmonte e só voltávamos para o Porto aos fins-de-semana. Como ninguém dali conhecia a nossa família, fomos bem aceites e formámos várias amizades, como o Tiago e o Sérgio. Mais tarde, quando fomos para a universidade, no Porto, acabámos por conhecer a Alice, a atual mulher do Diogo.

Os tempos como estudante já lá vão, porém, até hoje, o meu caráter é confundido com o do meu pai. Para que conste, até posso ser rico, mas não sou um filho da puta. Ocupar o lugar do meu pai tanto é um sonho como um pesadelo. Não quero estar num negócio relacionado com aqueles patifes, contudo, a minha vontade de libertar e dar algo digno às pessoas que empregamos é muito maior.

Félix Henrique dos Santos Gama é o tipo de patrão que gosta de jogar xadrez com os funcionários, onde estes são os peões e o tabuleiro é a vida deles. Uns vão-se comendo como se fossem animais selvagens, para tentarem ao máximo não perder o emprego. Há quem se safe com um decote e há quem morra com a falta dele. É o tipo de marido que se esquiva para casa do melhor amigo Rogério algures em Aveiro para ocupar o seu tempo com drogas e prostitutas. Como o sei? O Rogério tem quatro filhos: Marcos, Jaime, Laura e Diana. Ao fazer contas, já se sabe quem foi o passarinho que me contou.

A minha mãe é um caso totalmente diferente. Sara Freitas dos Santos Gama é dona de casa e a típica mulher do lar: leal ao marido, dedicada com os filhos e tenta ser cega quando se trata das visitas das empregadas ao escritório do meu pai. Nunca sai de casa por opção própria, a não ser quando vai à Igreja. À semelhança de um passarinho com uma asa partida, quer voar para longe, mas a dependência emocional e a falta de amor-próprio não a deixam.

Como filho biológico dos dois, já tentei separá-la e protegê-la do meu pai. Por mais que tente abrir-lhe os olhos, é escusado. Sempre que o faço, os seus lábios pintados de vermelho formam um sorriso sem esperança e a sua mão segue caminho até à minha face ou até à minha mão, dizendo, quase num sussurro para não se emocionar: "Um dia entenderás."

Espero nunca entender e espero fazer mulher nenhuma entender.

Fui distraído por uma gargalhada vinda detrás de mim. Virei-me para ver do que se tratava. Era um miúdo que aparentava ter pouco mais de um ano a tentar correr. Uma das empregadas logo apareceu atrás dele. Ao ver-me, abriu um sorriso e eu retribuí o gesto.

— É o seu filho? — Perguntei-lhe curioso, aproximando-me dela.

— Agora sim — respondeu ao pegar a criança ao colo. — Foi abandonado pelos pais. O senhor Félix sabia que eu queria muito ser mãe, apesar dos meus problemas, e então... cá estamos nós.

Desejo: Fazer-te ficarOnde histórias criam vida. Descubra agora