Fragmento n°1

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(Ano 1365, Porto – Vila do Conde)

— Vim para o jardim para ter algum sossego e para não respirar o mesmo ar que vós… — olhei para ele não muito discretamente. — Contudo, aparece-me aqui, como se por um acaso — suspirei. — É preciso ter lata.

— Estaria a mentir se dissesse que vê-la irritada me dá desgosto. — Disse ele, sentando-se do meu lado, mas na outra ponta do banco de pedra.

— Claro que não dá! Vocês, criaturas com apelido de corça, só se contentam com o desprazer dos demais.

— Não com todos os demais… — chegou-se um pouco mais, fazendo-me observá-lo pelo canto do olho — Mas confesso que espanhóis sempre me tiraram do sério. — Levantou-se, pegou numa pedra e atirou para o riacho à nossa frente. Voltou a olhar para mim. — Especialmente aqueles que têm um… — inclinou um pouco a cabeça, para confirmar o que estaria prestes a dizer — …dragão no brasão. — Voltou a concentrar-se na sua brincadeira. Libertei uma gargalhada.

— Claro! Porque um lusitano com um leão sempre mete mais medo — ironizei, concentrando-me na minha leitura.

— Deixe-me adivinhar: não gosta de felinos? — Atirou outra pedra.

— Especialmente dos mais arrogantes. — Completei sem lhe dirigir o olhar.

— E o que os dragões são de tão especial, mesmo? Para além de se apropriarem do que não é deles? — Retorquiu com o típico tom de sarcasmo na voz.

— Podem queimá-lo vivo, se continuar com essas acusações.

— Sempre fui ensinado a ser verdadeiro. O que disse tem sinceridade no carácter.

— Que carácter?! — Deixei escapar. Ele virou-se para mim e eu devolvi-lhe o gesto, olhando desafiadoramente para a sua expressão azeda.

— Nunca lhe disseram que mulher boa é mulher calada? — Perguntou.

— Ah! Como adoro ouvir isso da boca de um homem… Só demonstra a fraqueza e o medo que sentem ao pé de uma mulher, quando esta, segundo vós, não é de todo “boa”.

— Sim, estou aterrorizado! Apavorado! — Gargalhou. — E o que me vai fazer, hm? — Aproximou-se de mim. — Vai foguear um pobre homem indefeso?

— O senhor não era um leão digno lusitano? Já não estou a perceber. Deve ser pela desvantagem linguística, devo ter entendido mal. — Voltei a ler. — Mas, nada tema, meu pobre homem indefeso. Eu sou uma mulher. Escusa fugir de mim com a cauda entre as pernas!

Ele bufou com a minha ironia.

— Anabela!! — Ouvi o meu pai chamar, enquanto se aproximava de nós. — O que estás aqui a fazer? — Perguntou-me ele.

— Aqui o Senhor Rodrigo estava a ensinar-me um pouco de português — ironizei, olhando para o meu opositor.

— Tem aqui uma bela filha, Senhor Carlos. — Elogiou-me falsamente, dirigindo-se ao meu pai.

— Ainda bem. Vamos. — O meu pai olhou para mim. Eu levantei-me do banco e fiz uma vénia ao português.

— Foi um prazer, Gama.

— Igualmente, Belmonte — anuiu, vendo-me seguir caminho.

Desejo: Fazer-te ficarOnde histórias criam vida. Descubra agora