12.

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—Aqui, bebe isso. — Tom me estende um copo cheio de um líquido amarelado.

Entorto o nariz ao sentir o cheiro extremante adocicado vindo da bebida.

—O que é isso? — Pergunto erguendo a cabeça para olhar o garoto em pé a minha frente.

—Chá de... alguma coisa. — Ele se senta no chão, próximo aos meus pés. — Roubei da caixinha de temperos da minha mãe.

Eu consigo dar um sorriso de leve, mas os cantos da minha boca não aguentam o esforço. Até mesmo a menor das interações humanas está me parecendo mais difícil do que correr uma maratona no momento. Detesto brigar com meus pais, mas detesto ainda mais não ser ouvida por eles.

—Entendi. — Repouso o copo na mesa de centro e cruzo as mãos.

—Vai me contar o motivo de ter me feito te resgatar de uma crise no meio da tarde? — Seu tom de voz é brincalhão, mas posso ver sua boca sendo repuxada pela preocupação.

—Briguei com os meus pais. — Enterro as unhas nas palmas das mãos lembrando da situação de mais cedo. — Uma discussão completamente desnecessária e que me tirou do sério.

Tom me olha atentamente enquanto me escuta. Gosto disso nele, ele me ouve sem interrupções, só começa a falar quando percebe que realmente já disse tudo o que precisava dizer.

—Meu pai é um estúpido. Ele não consegue me ouvir... — Minhas unhas se enfiam cada vez mais fundo. — E minha mãe faz praticamente a mesma coisa. Ela reclama, reclama, e reclama... e ao invés de falar qual é o problema, ela simplesmente surta! Diz tudo o que vem a mente e não se importa se as palavras vão magoar as pessoas ao seu redor ou não.

Só interrompo o movimento das unhas quando sinto uma umidade nas pontas dos dedos. Inclino a cabeça. É sangue.

—Merda. — Sussurro encarando minhas próprias mãos.

—Porra, Mat. — Tom se desespera em agarrar minhas mãos e analisá-las com cuidado. — Não sai daí. — Ele avisa e se levanta apressado em direção do banheiro.

Volto minha atenção para as mãos. Devia estar sentindo dor. Mas não estou.

A dor é fundamental. Mesmo que seja algo horrível de se sentir. Sem ela não passamos de pedaços de carne sem sentimentos vagando em um mundo enorme. Sem a dor, o mundo enorme é apenas um globo composto por água e terra. A tristeza e a dor precisam ser sentidas. Para que possamos sentir a alegria mais tarde.

Mas nesse momento, não estou sentindo-a.

—Voltei. — Tom se apressa em minha direção segurando uma caixinha branca com uma cruz vermelha desenhada no topo.

—Tom, não precisa de tudo isso. — Aviso o observando se sentar ao meu lado no sofá.

—Silêncio. Me deixe trabalhar. — Ele me lança uma piscadinha e então agarra minhas mãos.

É assustador o quanto ele é cuidadoso. Levando em conta de como é agressivo quando está com a guitarra, nesse momento ele está agindo praticamente como um príncipe.

Ele molha o algodão com o soro fisiológico e aplica delicadamente sobre a ferida.

—Olha, vai doer só um pouquinho... — Ele alerta pegando uma garrafa minúscula de spray antisséptico.

—É sério? — Pergunto.

—Não, vai doer para caralho. — Ele sorri de canto e então aperta de leve o algodão contra minha pele.

Me contraio um pouco ao primeiro toque mas logo me acostumo com a ardência.

Tom larga o emaranhado de fios e agarra um band-aid de dentro da caixa.

—Já disse que não precisa de tudo isso. — Inclino a cabeça para que me olhe nos olhos.

Ele levanta o olhar e analisa com cuidado meu rosto.

—Fica quieta. — Ele sussurra bem próximo a mim.

Encolho os ombros submissa a essa ordem. Ele está sério enquanto abre as abas do curativo e o encaixa na palma da minha mão. Tento me concentrar na fisgada que acabei de sentir no centro da pele mas não consigo. A respiração dele está pesada e quente contra meu rosto. Ele não percebe o que está causando em mim agora, continua atento ao que está fazendo. É praticamente uma tortura o fato de que estou voltando a sentir aquela sensação estranha novamente. A mesma sensação que senti quando acabei encima dele naquele dia.

—Pronto. — Ele diz baixinho e dá um tapinha nas costas da minha mão indicando que acabou.

Mas não me movo. Continuo olhando para a mão parada no espaço entre nós dois e tento não me sentir afetada por sua presença... ou por seu toque. Sua mão ainda está por baixo da minha, e agora ele parece ter percebido o que está acontecendo, porque seu polegar se esfrega delicadamente pela extensão da lateral da minha mão.

—Matilda. — Ele diz baixinho olhando para o movimento do próprio polegar.

—O que foi? — Minha voz sai por um fio e não consigo tirar os olhos de seu rosto.

—Eu já terminei. — Seu olhar encontra o meu.

POOF.

É o som que ouço ao sentir a onda de eletricidade que passa por nós.

Porra, isso é muito estranho.

Desvio o olhar e respiro fundo.

—Acho que eu devia ir... — Começo a dizer.

—Quer ver um filme? — Ele diz com a voz fraca.

Espero que dessa vez ele também tenha sentido essa sensação estranha.

—Que tipo de filme?

Ele se levanta com um meio sorriso e caminha até estar de frente para a gaveta do balcão onde fica a televisão.

—Está preparada? — Ele está com as mãos atrás das costas.

Dou de ombros casualmente.

—Claro.

Ele levanta uma caixinha de DVD e sorri ao apontar para os zumbis na capa.

—Filme de terror. — Ele sorri malicioso.

Solto um riso sincero ao me lembrar da lista.

—Sobre zumbis? Não curto zumbis. — Explico. Arranco a caixa de suas mãos e analiso a imagem dos seres de carne apodrecida na capa.

—Tem medo? — Ele caçoa.

—Quando eu era pequena meu tio me contou uma história bizarra sobre zumbis. Fiquei com medo que um dia eles aparecessem andando de bicicleta na frente da minha casa. — Digo e sorrio ao ouvir a risada alta de Tom ecoar pela sala.

—De bicicleta? — Ele não consegue parar de rir.

—Foi horrível, tá legal? Minha pressão sempre caía quando anoitecia, jurava que eles fossem aparecer durante a noite. — Comprimo os lábios.

—Puta merda, Mat. — Sua risada vai cessando conforme ele caminha até mim. — Eles não vão aparecer andando de bicicleta nesse filme, eu prometo. Mas se aparecerem... — Ele se inclina um pouco até estar da minha altura. — Deixo você me agarrar.

Meu sorriso se desfaz e engulo em seco.

Oh merda.

training wheels - Tom KaulitzOnde histórias criam vida. Descubra agora