Onde mora Deus.

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E logo eu que nunca fui de crer em Deus

Hoje me pego pedindo ajuda pra santo...

— O azul da guia realça o do seus olhos, impressionante. — Me elogiou com um olhar dócil que foi do meu agrado.

Estava me achando, confesso. Era uma guia agora verdadeiramente minha. Eu ainda estava em êxtase e era um dos primeiros êxtases da vida em que não tinha medo de me perder.

A atmosfera parecia estar alterada, me deixava submersa em uma alegria que não cabia em mim e o meu coração era tomado por um amor no qual eu nunca provei, tanto é que por tamanha inexperiência, não sei de fato descrevê-lo. Só sei que doce.

Em conversas com Dalila, ela costumava se nomear como alguém que era apaixonada pela vida e por viver... Era isso. Tudo bem que tudo poderia ser iniciático e que aquele era um recorte de bem estar, momento esse que não estava sendo ultrapassado pelos problemas que carrego de maneira geral, mas foi essencial, essecial para eu descobrir o que gostaria de me tornar.

Recebi, para comigo, um chamado muito grande da natureza. Desde pequena meu contato com ela sempre foi profundo e também era ela a proporcionadora dos meus momentos de paz, longe dos abusos de minha mãe.

Quando ela precisava viajar com um novo namorado ou gostaria de se livrar de mim, me levava de surpresa na casa da minha avó, essa que trabalhava boa parte do tempo no canavial e não tinha outra opção a não ser me levar junto.

Assim cresci, de pé no chão e buchinho pra fora, me sentava de manhã na areia, só saía dali quando a noite queria chegar e olhe lá, olhe lá porque ainda chorava muito quando não tinha terminado de brincar com minhas formiguinhas e queriam que eu entrasse para casa.

Assim fui crescendo, arrancando fruta do pé, fazendo amizade com todo tipo de animal e encontrando nisso tudo um amor muito profundo, de algo que não me agredia e que não me deixava irritada, de algo que não me trazia sofrimento.

Minha vó faleceu e minha conexão foi cortada, foram difíceis os tempos de precisar algum refúgio e não ter, porque era lá no terreno dela que eu encontrava, era lá onde tinha férias da minha mãe, era lá onde sarava minhas feridas, de maneira literal mesmo, onde elas podiam se recuperar sem serem magoadas constantemente pela mesma pessoa.

Moro na cidade, mas minha alma nunca foi de lá. Essa viagem está me ajudando a reestabelecer o que quero na minha vida, considerar novamente meus valores, minhas crenças e minhas metas. E sinceramente, quando estiver bem velhinha, não quero me ver dentro de um apartamento que me dá vista para inúmeros prédios. Quero acordar ao lado da minha esposa na nossa casinha, poder abrir a janela e me deparar com meio mundo de verde.

Sei que não é algo fácil de se conquistar, há muita burocracia por trás de tudo, mas a intenção já vale. Quando se define um plano de chegada, os outros paços são tracejados baseados em sua meta, você pode até se perder um pouco do caminho, mas saberá bem onde achar a sua bandeira vermelha, é só tentar buscá-la.

— Não é? Combina muito comigo mesmo. — Disse orgulhosa e ouvi um riso sincero, eu estava empolgada, passava minha mão pelas miçangas quase o tempo todo. — Você também está linda de dourado. — Respondi porque realmente, já tinha visto ela trajada algumas vezes assim, mas não sei, estava tocando num ponto muito diferente agora.

Rezando um terço pra ser inteirinho seu

Peço baixinho pois estou me acertando...

— É o brilho de mamãe. — Declarou sorridente, toda majestosa. E realmente parecia ser mesmo, sua melanina parecia brilhar exposta ao sol, assom como as peças de ouro que usava como acessórios. — Agora eu vou ter que pedir licença. — Informou colocando o balaio em cima de uma pedra, com cuidado. — Ser de santo é assim, do nada você tem que se deitar no chão. — Me fez rir divertidamente e me surpreendeu, mesmo com sua roupa tão limpa ela se deitou no chão de terra, encostando sua cabeça ali em um comprimento. — Ritos feitos somente para quem é da religião, é uma forma de demonstrar respeito pela autoridade que ela é. Principalmente por eu ser sua filha, tenho que fazer isso, pedir licença. Oxum era uma rainha venerada, assim como os outros orixás, faziam parte de hierarquia e me escolheu, escolheu minha cabeça para acolher. É uma demonstração de quanto sou grata. — Explicou-me pacientemente, tirando os fiapos de galhos secos de sua roupa e apanhando o balaio novamente. — Isso faz parte do "rumbê" que é a tão falada educação de axé que as Iyalorixás ou Babalorixás passam de ensinamento para os seus filhos.

Olhos de mar, céu e estrelas - Lésbico.Onde histórias criam vida. Descubra agora