26.1 - Até menos

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Alison

Achei que voltar a Heaven's seria estranho depois de tantos dias, mas... não. Nem um pouco.
Era sexta de manhã, então os mesmos funcionários atarefados me cumprimentaram ao longe, reconheci a mesma clientela dispersa para todos os lados, os mesmos produtos dispostos nos mesmos estandes, as mesmas lojas parceiras nos mesmos cantos e... Meu Deus, o que era aquilo?!
O corredor, onde ficava o escritório de Kat e por onde passei com Evan quando terminamos, não estava apenas barrado por uma placa de sinalização, como também estava...
— Lindo! Uau... isso está muito lindo! — admirei ao alcançar o corredor e dar uma olhada melhor na parede agora toda revestida com o que tinha que ser a ilustração mais realista de pipocas que eu já havia visto na vida.
Há algumas semanas atrás, quando Kat havia me contado que era essa a visão que tinha para este caminho, eu fortemente a aconselhei a escolher qualquer outra coisa. Não porque a ideia não me apetecia, na verdade eu concordava com ela; "Ficaria sutil, mas divertido, qualquer um que olhasse para aquele canto escondido saberia para o que ele levaria sem necessidade de pedir informações, ou ler uma placa sequer, e aguçaria a vontade de todos de comer pipoca".
O problema era que eu não conseguia trabalhar com realismo em grandes proporções e, em minha experiência, pouquíssimos outros artistas conseguiam, por mais renomados e experientes que fossem.
Era por este motivo que procurava apenas prestar atenção a minha frente quando andava na rua, eu não gostava de perceber que as pessoas pintadas em paredes urbanas estavam com rostos, mãos e dentes disformes, que árvores estavam tão excessivamente detalhadas e sombreadas que pareciam um monte de riscos escuros sem nexo e que animais pareciam ter sido retratados depois de um atropelamento, ou tragédia parecida. Eu não gostava de encontrar defeitos na arte dos outros, porque sabia bem que não era um trabalho fácil e poderia se tornar ainda pior, quando aumentado.
Então persuadi minha melhor amiga a não estragar a aparência de seu estabelecimento e apenas se ater a elementos simples ou papéis de parede coloridos, porque o que ela queria era praticamente impossível de ser bem feito.
Porém, aqui eu estava, engolindo todas as minhas crenças, encarando o que parecia ser quase uma foto ampliada do interior de um balde pipocas naquela longa e lisa parede.
Pipocas, pelo amor de Deus! Isso era difícil de desenhar até em traços caricatos ou infantilizados!
Quando já estava pensando em puxar o celular do bolso e mandar uma mensagem para Kat pedindo para que me apresentasse ao artista, logo notei que já o conhecia.
E ele ainda estava ali, agachado no canto mais fundo do corredor, com pincéis muito pequenos em suas mãos e tinta branca demais em seu cabelo laranja.
— Você. É. Um. Deus! — pontuei cada palavra, saltitando em direção a Daniel. Ele virou a cabeça repentinamente, acordando de sua absorção mental. — Oi! Foi você quem fez tudo isso? Sozinho?
Me olhou de cima abaixo, parecendo meio surpreso com a minha presença e com o fato de que era com ele mesmo que eu estava falando.
— Oi, ahm... Sim! Fui eu que fiz... tudo. Katrina comentou que queria assim e... me deixou tentar. — Se endireitou de pé a minha frente, devagar, procurando algum lugar para deixar os pincéis, até que decidiu segurar os três em um só punho e... timidamente acenar para mim. — Oi.
Somente sorri, achando agradável sua arrepsia de sempre. Nunca tive certeza do porque ele agia assim por vezes, tão ressabiado com todo mundo, mas, de todos os amigos de Evan, ele era o único que já consegui trocar mais do que cinco palavras, mesmo que nada muito relevante. E isso era dizer muito, de um grupo de caras que estavam sempre muito interessados em atirar em alguma coisa nos videogames, assistir qualquer que fosse o esporte que estivesse na TV ou em praticá-los eles mesmos, para prestar atenção em qualquer um que não compartilhasse dos mesmos costumes.
— Você é muito talentoso. Parabéns! — elogiei, meu coração artístico pulsando de felicidade com o que estava vendo. — Como faz isso? Que técnica de visualização você usa? Pode me ensinar?
Intercalei entre a parede e seu rosto umas cinco vezes, tamanha a empolgação, mas, tão logo fui me apaziguando, acabei percebendo que me encarava com pura descrença confusa, uma enorme interrogação brotava de sua cabeça sem nada responder. Dediquei alguns segundos para internamente me questionar se não havia dito nada errado ou ofensivo, mas...
— Você não é, tipo... uma artista estudada e tal? — Oh.
— Eu sou, mas não me especializei nesse tipo de pintura, é difícil! Eu quero aprender, pode me ensinar sua técnica?
Danny vacilou, olhando em volta como se quisesse que alguém respondesse por ele, levantando a mão para coçar a nuca, mas desistindo assim que se lembrou dos pinceis em sua mão e... eu havia voltado a não entender!
O que eu estava dizendo que o deixava tão desconfortável assim? Mais do que o normal? Não era comum que eu causasse este tipo de efeito em ninguém, geralmente eu era a pessoa desajeitada que não sabia o que fazer com as mãos.
— Ahm... eu não... não sei se conseguiria. Não... — Apontou para as pipocas, com a mão livre, esta realmente coçando a parte de trás de sua cabeça logo depois. — Não está tão bom assim, eu não sei... não sei técnica nenhuma. Você com certeza sabe mais do que eu, eu nunca... estudei, eu só... só tento... não sei...
Observando seus ombros largos se levantarem e abaixarem conforme falava, primeiro juntos, depois novamente, mas um de cada vez, a explicação somente estalou no meu cérebro como uma tábua de madeira velha sendo forçada a se curvar: ele não tinha confiança em seu trabalho.
Aliás, quando parei para pensar em seu jeito irresoluto, em geral, e em como nunca falava muito entre seus amigos e apenas concordava com o que quer que estivesse acontecendo, foi como se um espelho para o meu eu adolescente se revelasse a mim pela primeira vez e isso era horrível!
Era horrível porque eu estava aqui, elogiando seu talento, pedindo para que me ajudasse a ser boa como ele, e ele não parecia saber o que fazer com isso. A Alison dos onze aos dezoito anos? Ela era tímida, extremamente insegura, nunca sorria muito, nunca tinha coragem de usar nada chamativo, teve no máximo dois ou três amigos esporádicos, mas... ela sempre foi muito confiante sobre seu próprio talento. Foi praticamente tudo o que teve a vida toda.
Chegar a este ponto, nesta idade, com este nível de habilidade que Danny tinha e não conseguir sequer acatar a um elogio normalmente? Isso me parecia uma realidade terrível!
Algo apenas se aflorou em mim e eu me senti pessoalmente responsável em mudar isso.
— Então está me dizendo que isso é talento puro?! Você nunca fez algum curso, nunca estudou alguma técnica, ou algo do tipo? — Meneou negativo e nervoso, de cabeça baixa. — Isso é incrível! Você é incrível, parabéns!
—... Valeu — murmurou, finalmente, parecendo querer sair correndo dali.
— Mas, olha, prática é algo que dá pra se ensinar. Você me mostra como começa, eu vou te acompanhando e assim eu aprendo. Arte, em geral, é isso. Prática! Técnicas só servem pra acelerar as coisas para os profissionais, e... eu poderia te ensinar algumas, se você quisesse — acrescentei, sem pensar muito. — Você definitivamente não precisa, mas conhecimento é sempre bom... O que você acha? Eu tenho alguns painéis de madeira que estão há meses no meu loft unindo poeira. Pode me ajudar com eles?
Algo brilhou em seus olhos cor de relva, que finalmente fixos nos meus, pareceram buscar por mentiras, deboches ou ironias, mas... quando não encontrou nada parecido, o sorriso animado que abriu, emoldurado por covinhas, tinha que ser um dos mais bonitos que eu já tinha presenciado na vida. Deus, ele é tão fofo!
— Isso... seria demais, na verdade! Sempre quis aprender coisas mais... profissionais e tal. Vai ser... bem legal. Obrigado, Alison. — Ele me estendeu a mão, como se buscasse firmar alguma espécie de contrato, mas logo recuou, encabulado de novo pela própria falta de jeito. Foi tudo o que precisei para não me aguentar mais e apenas pular para frente, o abraçando pela cintura num balanço suave.
— Vai ser a melhor coisa do mundo! — Me afastei antes que se tornasse demais. — Mal posso esperar pra aprender com você!
— E eu, com você.
Eu já queria ele na minha vida pra sempre! Como Evan pôde ter falhado tão miseravelmente em não nos apresentar direito e não apontar nossas semelhanças?! Aliás, será que ele sequer tinha notado? Como não notaria?
Um entusiasta da arte carregado de acanhamento? Fala sério, Danny e eu teríamos assunto por eras!
Entre a séria mulher de negócios, o amor de infância impassível e o ex-colega de faculdade excessivamente convencido, uma amizade com alguém como Daniel era algo que eu nunca soube que precisava tanto, mas que já poderia imaginar como seria incrível.
Alguém iria me entender. De verdade! Do meu ângulo de vista! Isso tinha tudo para ser... tudo!
Pesquei meu celular do bolso do vestido.
— Olha, me passe seu número e a gente vai conversando, pra marcarmos um dia de nos encontrarmos e...
— Sério? Até o Danny?!
A voz... aquela voz, que muito se irradiou em meus tormentos...
A voz agora soava atrás de mim.
Girei em minhas sapatilhas para encontrar o dono dela, com um insuportável sorriso presunçoso na cara.
— Tudo bem, sumida? Quanto tempo...
— Noah — foi todo o cumprimento que obteve de mim, me virei de volta para Danny logo depois, mas não para olhar para ele e, sim, fechar os olhos e respirar fundo.
— Ei, por que o gelo agora? A gente já se resolveu, eu pedi desculpas! — Me retesei ainda mais, engolindo em seco ao lembrar da conotação de suas desculpas. — Olha, não sei se você está tentando "marcar pontos" com todo o grupo de amigos, mas, no seu lugar, eu tentaria o Tim. Ele é dramático igual a você e o Danny-boy joga em outro time, então... — A velocidade com que meu nível de irritação foi ultrapassado com esta sugestão, foi alarmante. Mas não tive tempo de me preocupar com isso.
A indignação pelo insulto veio muito mais rápido.
— Não é isso que tá acontecendo! Você não sabe de nada, pra variar!
Ele levantou as mãos em rendição, mas visivelmente inabalado com os meus nervos.
— Eu sei! É brincadeira, calma!
— Não teve graça, Noah. Para com isso — ouvi Daniel atrás de mim, o timbre de voz mais preciso e sério que já havia o presenciado utilizar.
— Relaxa você também, meu Deus... Todo mundo tão estressado aqui. — Fechei minhas mãos trêmulas em punhos, sentindo as pontas curtas das minhas unhas machucarem as palmas, me esforçando muito para me acalmar. Noah, no entanto, tranquilamente enfiou as suas dentro dos bolsos da bermuda jeans, ainda muito impassível. — Já acabou por hoje? Podemos ir? — perguntou olhando para seu amigo.
— Daqui a pouco, preciso de mais alguns minutos. Vai esperar por lá, em uma das mesas. — Vi Danny apontar rigidamente para fora do corredor e Noah riu sem muita vontade.
— Tô indo... calma. — Seus olhos escuros caíram em mim e ele pareceu querer dizer algo mais, mas logo desistiu, com um aceno. — Até mais, Alison.
— Até menos — resmunguei quando ele já havia se afastado.
Danny reapareceu na minha visão.
— Sinto muito por isso, Alison. Noah pode ser um idiota às vezes...
— Comigo, parece que ele faz questão! — reclamei, respirando fundo. — Desculpe pelo surto, ele só... me deixa muito nervosa, mesmo que não esteja nem tentando direito. — Por uma série de razões, a mera presença dele me desestabilizava.
Daniel sorriu com cumplicidade.
— Sei como é, ele tem satisfação em cutucar as feridas das pessoas, é... a parte desagradável da personalidade dele. — Deu de ombros, fazendo uma careta incômoda. — Mas por dentro ele é um cara legal. Só não tenta muito ser, por algum motivo.
Estava prestes a fazer algum comentário engraçadinho sobre terapia, mas logo engoli minhas palavras, eu não era alguém que podia dizer muito sobre isso.
— Enfim... já esqueci dele. — Busquei meu celular de novo, me forçando a ficar alegre como antes. — Voltemos ao nosso assunto.
Não demorou para que Danny salvasse seu contato no meu celular e então, depois de elogiar sua arte mais uma vez, eu já estava indo. Parei na frente da porta do escritório de Kat, mas, como suspeitei por ainda não ter aparecido, ela não estava. Saco!
Precisava conversar com ela, precisava comer alguma coisa bem doce, ouvir música boa, um banho quente, uma soneca, qualquer coisa! Qualquer coisa que removesse o veneno do desgosto em meu peito.
Noah nunca seria um assunto fácil para mim, não adiantava! Como eu queria poder voltar no tempo e ter impulsos sexuais com outra pessoa... Com qualquer uma! Ele era muito difícil de lidar e só parecia se divertir com isso.
Minha aura apenas se fez piorar, ao notar que ele não estava nas mesas, ao longe, mas exatamente na passagem restrita, que ele sabia que eu precisaria utilizar para chegar nos fundos, onde estavam as escadas para o meu loft.
E assim, freei meus passos e segui para a entrada principal. Não importava que eu teria que dar a volta no exterior todinho da Heaven's, pelo estacionamento, para alcançar a entrada externa na rua de trás. Eu não iria cruzar o caminho dele.
Logo entendi, no entanto, que ele estava determinado a infernizar o meu.
Seus Jordans guincharam no chão liso, quando ele parou de correr bem a minha frente.
— Qual é, Ali! Não precisa ser assim, eu tô tentando ficar numa boa com você! — disse sem conseguir esconder seu divertimento, andando de costas, já que eu não estava parando para ouvi-lo.
— Você vai ficar numa ótima comigo, é só ficar longe!
— Não, mas eu quero falar com você!
— Eu não quero falar com você. — Contornei em volta dele quando parou de se mover.
— Mas é sério... Alison! — me chamou alto demais e eu acabei travando, tanto pela cena pública que ele estava fazendo, quanto pelo tom de voz mais firme que assumiu de repente. Noah me alcançou de novo, parando na minha frente. — Me desculpa. Sério. Pelo jeito que te tratei.
— Já te desculpei por isso — lembrei, o encarando séria.
— Sim, mas eu tô pedindo de novo. Você merecia muito mais... — me olhou por inteiro — cortesias.
Foi a palavra que escolheu, mas sua cara não expressava pensamentos nada corteses.
Minhas sobrancelhas sumiram atrás da franja de tão arqueadas e, mentalmente, contei três segundos para não fazer uma cena ainda maior gritando com ele.
— Está desculpado. Agora segue com a sua vida. — Forcei um sorriso e tentei desviar de novo, mas ele deu um passo para o lado, me impedindo.
— Valeu, eu vou, mas... só mais uma coisa.
Meu sangue ferveu dentro de minhas veias e eu me sentia a ponto de explodir, mas alguma parte racional em mim me convenceu que ainda podia apenas cooperar e acabar com isso logo.
— Só fala, então!
Abrindo aquele sorriso pernicioso de novo, o que eu odiava por um dia ter me distraído da perturbação que ele era, Noah falou.
Pra variar, falou mais do que devia.

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