Lembranças em caixas

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Fiquei observando aquela escuridão ocultar a escada e um facho de luz denunciar que havia alguma pequena janela que permitia o porão ser clareado pelo dia.

"Ah!" –Leigh tomou a frente e puxou a cordinha pendurada na luz. –"Desculpe."

Com a luz acesa, a escada se mostrou menor do que eu lembrava. Ou, simplesmente, eu estava maior do que eu lembrava. Ela deu um passo para o lado, permitindo que eu seguisse à frente. Meus olhos logo foram atraídos pelas caixas de papelão localizadas no lado direito e, de fato, meu nome estava em uma delas.

"Yolanda..." –Eu li, em voz baixa.

"Tem essa e a de trás." –Leigh se apressou em dizer. –"Aquelas..." –Ela apontou. –"São de Mary Lane."

"E de..."

"Amy?" –Ela me interrompeu. –"Estão todas aí."

Olhei para Leigh e para as caixas, como quem pede por privacidade, e prontamente fui atendida.

"Qualquer coisa, estarei lá em cima." –Ela disse, antes de subir as escadas.

Esperei Leigh-Jane sumir do meu campo de visão para, enfim, poder abrir a primeira caixa. O cheiro de mofo se misturava ao papelão e a falta de corrente de ar no porão trancado. Lá estava Theodora, na caixa errada, como se fosse minha. Com cuidado, peguei a boneca que pertencia a Amy e senti algo percorrer pelo meu corpo, fazendo com que eu me sentisse viva. Olhei em volta, e mais para o lado, avistei a caixa escrito "Amy" e lá coloquei Theodora em seu devido lugar. Antes de fechar a caixa dela, já que não era a minha intenção revirar suas lembranças, me deparei com um envelope vermelho, com o nome de Mary e me questionei se seria muito errado eu ler o que havia dentro. Certo, eu estava ciente de que era errado, mas será que era muito? Quando notei, já estava em minhas mãos, fora da caixa.

"Eu só..." –Agitei o envelope na minha mão. –"Vou ler um pouquinho."

Eu ainda estava em dúvida e tentando arrumar algum motivo para ler aquilo sem me sentir culpada.

"Bom, eu acredito em destino..." –Eu batia o envelope em minha mão. –"Não vi isto por acaso."

Coloquei o envelope de volta na caixa e me afastei.

"Quer saber?"

Sem pensar em mais nada, abri o envelope que Amy havia destinado à Mary e, ao desdobrar o papel, encontrei um desenho, com traços infantis, representando Mary e um anjo. "Sei que já sou ese anjo. Sei que estaremos asim para o sempre." Os erros davam todo o charme somado com a letra torta e tremida. Olhei acima do meu ombro, imaginando se uma das duas estaria ali, olhando por mim. Ou, quem sabe, de mãos dadas, me observando tentar tomar o rumo certo em uma vida sem elas.

"Já ultrapassei meus limites." –Eu disse, dobrando o desenho. –"Devo voltar para minha caixa."

Devolvi o desenho ao seu envelope, com todo cuidado que me cabia evitar que aquilo rasgasse. Fechei a caixa, tentando parecer que eu não havia me intrometido ali e, de costas, voltei para onde eu estava.

"Encontrou alguma coisa?" –Ed perguntou, descendo as escadas.

"Que susto!"

Com o susto, perdi o controle dos meus braços e quase derrubei as caixas que estavam empilhadas.

"O que está fazendo aqui?" –Perguntei, segunrando a caixa.

"Achei que poderia vir..." –Ele disse.

"Leigh me deixou sozinha." –Eu disse.- "Para pensar."

"Tudo bem." –Ed disse, voltando para a escada.

"Onde vai?" –Perguntei.

"Te deixar sozinha." –Ele deu de ombros. –"Para pensar."

"Espera!" –Eu disse, indo até ele. –"Ficou chateado com isso?"

"O que?" –Ele parecia querer não admitir. –"Claro que não! Eu entendo."

"Quer saber?" –Perguntei. –"Vamos embora daqui."

"Mas..."

"Mas nada!" –Eu disse, passando na frente de Ed rumo a escada. –"Nem deveria ter vindo."

"Mas você já está aqui, Landy."

"Me chamou de que?"

"O que?" –Ele parecia confuso.

"Voce disse Landy, não disse?" –Perguntei, me aproximando.

"E não digo isso sempre?" –Ele perguntou.

"Fala de novo."

"Por que?"

"Só..." –Me aproximei mais ainda dele, tão perto que eu conseguia sentir sua respiração. –"Fala."

Ele demorou para entender e, nesse meio tempo, pareceu reparar em cada detalhe do meu rosto até, finalmente, fixar seus olhos nos meus.

"Landy."

E, por impulso, o beijei. O beijei e o beijava cada vez mais. A cada novo segundo em seus braços, menos o tempo passava. Aliás, ele voltava. Me senti como se ainda morasse ali, como se aquele porão fosse o nosso refugio contra adultos que queriam tomar conta de nossa vida. Eu me sentia nova. Era capaz até de ouvir Mary me chamando pelo corredor.

"O que foi isso?" Ed perguntou, em tom de brincadeira.

Meus olhos ainda estavam fechados, tentando processar todas as lembranças que eu havia consumido naquele pequeno minuto. Abri os olhos e me deparei com um Teddy maior que eu, com o cabelo maior do que eu lembrava, barba.

"Não posso te beijar?" –Perguntei.

Eu não queria dizer que seu beijo pareceu como uma droga e me fez viajar até o passado. Então, disfarcei.

"Vamos logo."

Eu estava mesmo determinada a ir embora sem olhar nada. Todas aquelas lembranças presas em caixas já não faziam mais sentido para mim enquanto Ed ainda podia segurar minha mão. Esse era o tipo de lembrança que eu quero carregar comigo. Ele.


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