𝐂𝐀𝐏𝐈𝐓𝐔𝐋𝐎 𝐓𝐑𝐄𝐙𝐄

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Pela madrugada, Cecília foi agraciada pela companhia da insônia. Ela estava encarando pacientemente a paisagem neutra e certamente obscura da mansão dos Roussellot por uma das janelas do corredor. A chuva batia contra o vidro da janela com força e havia uma neblina espessa por todo o jardim. Cruzou os braços com o frio, suspirando baixo com desagrado.

Ela realmente odiava aquele lugar e não conseguia compreender como uma mulher tão rica como Margot ainda residia numa espelunca como aquela. Parecia que a chuva ia atravessar as paredes e atingi-las a qualquer momento. O mofo nas paredes e pelo teto faziam Cecília pensar que tudo estava tão podre que poderia desabar sobre sua cabeça enquanto dormia.

Se a casa aguentasse mais cinco anos de pé deveria ser considerada um monumento histórico.

Sua teoria era que Margot mantinha aquela casa de pé em respeito ao seu último marido, Raymond. Ele morou ali por toda a infância, enriqueceu e morreu dentro daquelas paredes. Ela não o respeitou em vida, mas agora queria respeitá-lo na morte.

Cecília sentiu seu coração palpitar quando viu uma pequena chama no fim do corredor escuro se mexer e logo sair de sua vista. "Não há nada na casa, o pior dos demônios já está dormindo...", resmungou mentalmente revirando os olhos. Ela se apertou dentro de seu casaco e caminhou até o fim do corredor, em meio a escuridão.

Cecília acompanhou com os olhos a chama amarela descendo as escadas silenciosa e pacientemente. Seus nariz inalou uma doce fragrância de sais de banho e a empregada já sabia de quem se tratava. "Mas o que ela faz fora da cama?", indagou com os olhos estreitos, descendo as escadas o mais quieta possível, vendo a chama amarela se apagar subitamente quando a porta da entrada se abriu. O vento empurrou a porta com força, mas a pessoa segurou com esforço, evitando que batesse e causasse um estrondo.

"Vai sair nessa chuva?", indagou-se novamente, seguindo os passos dela. Cecília a viu descendo as escadas e dando a volta na casa, não hesitou em enfrentar a chuva para segui-la. Seus sapatos se mancharam pela chama e ela ergueu os braços em frente ao rosto tentando se proteger da chuva. Caminhou pesadamente até as roseiras, encarando as belas rosas enquanto ofegava alto e mantinha seus olhos negros arregalados.

Pretende me seguir a cada passo que eu dê, Cecília? — Margot se virou com uma feição irritada.

— Enquanto fugir de mim é o que vou fazer, senhora! — Cecília gritou por cima da chuva. — O que está fazendo aqui fora?

Margot deu as costas para Cecília, não se importando mais com sua presença. Cecília não a questionou, apenas ficou ao seu lado como uma sombra. Se equilibrou para não escorregar na lama formada na grama do jardim mas foi inútil, já que ela derrapou e quase caiu.

— Eu o encontrei aqui. — a viúva apontou para as roseiras, sua voz saindo um pouco mais alta por causa da chuva e desengonçada pelo excesso de sentimentos. — Ele estava caído entre as rosas que tanto amava. Sua pele negra estava pálida, seus lábios lilases. Seu rosto estava com respingos de sangue por causa dos espinhos das rosas...

— Raymond?

Margot assentiu com força, prensando os lábios. Mesmo por entre a chuva Cecília pôde ver seus olhos inchados e fundos.

— O dia estava quente, e ele me pediu para fazer suco de laranja. Quando eu voltei com a jarra ele já estava morto. Não pude pedir ajuda pois Angelina e Irene estavam no supermercado. A luz da casa havia acabado no dia anterior, então não pude ligar para a polícia nem uma ambulância. — ela secou os olhos em meio a chuva. — Ele morreu em meus braços enquanto eu gritava por ajuda e tentava arrastá-lo para casa...

Cecília pareceu digerir aquela nova informação. Imaginou como seria encontrar seu grande amor em meio a morte, tentar ajuda-la, mas todos seus esforços serem em vão. Cecília sabia o que era ver seu amor morrer diante dos seus olhos, por isso, se compadeceu mais uma vez por Margot. Ela estava entrando em si novamente por meio da empatia, das lembranças e tudo aquilo que a rodeava. Margot estava nela novamente.

Cítrico | LésbicoOnde histórias criam vida. Descubra agora