Capítulo 42. Corpo Seco

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"Eu ouço o eco lá fora, na rua;
Está crescendo como um sonho de febre;
Corta como uma adaga quando tento respirar"
 
Army  - Zayde Wølf

Não importava o que eu perguntasse para Mabel, ela dizia não saber. 
 
— Pietro falou sobre uma ilha. Que ilha é essa? — Perguntei olhando para seu rosto enquanto ela se mantinha esparramada no sofá passando os canais com o controle. 
 
— Pela ducentésima quadragésima segunda vez, eu não sei. É a ilha dos Esmerados, mas como pode ver, eu não sou digna o suficiente para ir até lá. Talvez se eu subisse meu posto quando eu ainda era s
egurança… mas enfim. — Levantei as sobrancelhas com raiva.
 
— Como você não sabe de nada? — Mabel revirou os olhos.
 
— Meu pai era primitivo, minha mãe esmerada. Ela foi para a Escócia a fim de resolver algumas coisas, mas acabou ficando aqui com ele. — Ela falou mudando de canal tão rápido que era impossível distinguir o que estava passando em cada um. — Pietro a mandou para a Ilha de volta, eu deveria ficar com meu pai, mas Pietro não permitiu. Ele me fez voltar para a família da minha mãe, assim como os outros mestiços que viviam ali e até então essa ação dele foi chamada de "recolhimento". — Mabel suspirou cansada. — Enfim, menina, eu também não sei de muita coisa sobre você além de que parece ser importante. Você também tem um cheiro bom, deve ser por isso que gostam de você.
 
Revirei os olhos vendo que não conseguiria nada com Mabel. Estava cutucando o pendrive com os dedos enquanto andava pela sala coçando a bochecha com a vontade de enfiá-lo no meu notebook e ver o que diabos tinha ali dentro. Talvez todas as minhas dúvidas fossem saciadas? 
 
Não aqui. 
 
Engoli em seco colocando o objeto em meu bolso, fechei os olhos e suspirei dando três tapinhas nele antes de abrir o google e começar a pesquisar desejando que Carmem estivesse ali comigo, ela era a melhor pessoa para se descobrir a vida de alguém quando queria realmente.
 
Peguei a foto de Lilian em seu grupo de amigos e a observei com atenção. Se ela ganhou uma feira de ciências e tecnologias internacionais, isso significava que havia uma lista com os nomes dos estudantes participantes, não é?
 
Não demorou muito para que eu encontrasse o site do governo expondo os nomes e fotos dos participantes e vencedores.
 
— Essa era a sua irmã? — Perguntou Mabel. Eu nem percebi que ela havia saído do sofá e se sentado ao meu lado no balcão da cozinha. — Ela tinha rosto, olhar e porte de esmerada. Você não é como ela. Você é desajeitada como um boneco de ventríloquo.
 
— Obrigada. — Tomei a foto das mãos dela. — Cuide da sua vida se você não vai me ajudar.
 
— E o que você quer que eu faça? — Perguntou apoiando a cabeça na mão.
 
— Eu quero encontrar os colegas de Lilian atualmente. Quero saber sobre a vida dela. Você não pode me ajudar de qualquer forma. 
 
— E por que essa curiosidade repentina?
 
— Não é repentina. — Reclamei deslizando o cursor pelos oito nomes. — Eu tive… tive uns sonhos ultimamente. Eu não sei se são apenas sonhos ou memórias da minha infância já que eu não lembro de nada. Tô um pouco confusa.
 
— Você poderia fazer uma hipnose de regressão. —  Ela deitou o rosto no mármore. — Eu soube que funciona.
 
— Eu já fiz. Não me rendeu nada além de dor de cabeça. — Reclamei. — Se são memórias, meu cérebro desbloqueou agora sozinho… mas por quê? Me pergunto qual foi o gatilho.
 
Mabel suspirou indo até o fogão e pegando uma panela, manteiga e ovos.
 
— Por que você desconfia que sejam só sonhos? — Perguntou. — Por que você não sabe distinguir?
 
— Uma parte da minha memória sumiu. Os anos de que eu tinha uns nove ou oito anos pra baixo simplesmente foram embora. — Mordi a bochecha. — Eu sei que é normal você se esquecer sobre sua infância ao passar do tempo, mas o estranho é que eu lembro de tudo da minha vida, todos os detalhes, mas quando chega nessa parte, eu só consigo ver até meu aniversário de uns dez anos.
 
Suspirei me lembrando do garoto me entregando o próprio coração para que eu o comesse, de Eris me afundando até que eu adotasse no sangue; Me lembrei de Lilian, os cabelos brancos como algodão, o sorriso bonito dizendo que eu não me preocupasse porque ela se casaria com Aiden quando chegasse a hora.
 
— E sobre meus sonhos, eles parecem... irreais, fantasiosos. — Murmurei pesquisando aqueles nomes, me sentindo frustrada por seis estarem morando fora do país. 
 
Mabel quebrou o ovo sobre a frigideira, o barulho de fritura se espalhou pelo local. Suspirei me perguntando se ela comeria de novo mesmo depois de ter acabado de almoçar, mas ao menos ela estava comendo, não estava fazendo greve de fome como antes.
 
— Considerando os Esmerados Puros… então talvez sejam memórias. — Sussurrou. Olhei para ela por cima do ombro. — Eles são irreais, estranhos e fantasiosos. — Ela deu um sorriso discreto. — Quando eu era criança, achava que minha mãe era uma fada. — Ela cortou fatias de bacon. — Ela tinha cabelos loiros tão longos como os de um ser mágico descrito nos livros, diferente do meu pai que trabalhava em uma loja de carpintaria. Ele sempre estava sujo de poeira e tinha as mãos calejadas. — Ela suspirou, mas seu sorriso sumiu. — Houve um dia em que eu senti medo da minha mãe. No dia seguinte Pietro foi me buscar.
 
Mabel colocou as fatias sobre a panela junto aos ovos e começou a mexer. Esperei que ela continuasse, mas ela não voltou a dizer nada, ao invés disso, começou a misturar o resto de arroz que tinha na panela junto com o que fritava na frigideira.
 
Suspirei virando o rosto, eu não deveria perguntar mais. Mabel ficou perturbada por tocar naquele assunto.
 
— Os Esmerados puros, definitivamente eles não são comuns. Meu sonho era subir de cargo, ir até a ilha e ver com meus próprios olhos se o que dizem sobre ela é verdade.  — Disse Mabel aos sussurros. 
 
— Quem são os Esmerados Puros? — Estalei o pescoço e amarrei meu cabelo no alto da cabeça, os cachos caindo sobre meus olhos.
 
— São o senhor Aiden, senhor Pietro, Eris e todo o resto da nobreza. — Resmungou. 
 
— Okay… e qual é o nome dessa ilha? — Mabel me olhou entediada. — Você não sabe onde fica, mas com certeza já ouviu falar dela.
 
— Alguns chamam de Arcadia. — Falou com um brilho fraco nos olhos
 
— A ilha do deus Pã? — Coloquei a caneta entre os dentes. — A ilha da lenda com maravilhas, coisas mágicas, músicas que tocam pra sempre, elfos e ninfas ingênuas andando nas beiras dos rios? 
 
Mabel revirou os olhos para mim. 
 
— Ela tem muitos nomes, Arcadia é só um deles. — Reclamou. 
 
— Tá, então seguindo por essa linha de raciocínio, os Esmerados são criaturas mágicas? — Dei um meio sorriso. — Tipo o Légolas, o Gandalf ou o Harry Potter?
 
— Eu não sei. — Respondeu ríspida.
 
Levantei as sobrancelhas prestes a perguntar se ela não sabia o que ela mesma era, mas acabei tomando juízo de que provavelmente eu fui sem noção. Mabel acreditava naquilo, eu não tinha o direito de rir dela. 
 
— Desculpa. — Murmurei. Mabel ficou calada por alguns segundos.
 
— Tanto faz. Pare de zombar e não fique brincando com o que não conhece.
 
Virei minha cadeira para ela e inclinei a cabeça para o lado.
 
— Você quer que eu fique correndo no escuro? — Perguntei. — Não sou assim.
 
Mabel permaneceu me olhando por mais alguns segundos quando virei minha cadeira para o balcão novamente. Suspirei digitando e encontrando o nome do único colega de Lilian que vivia no Brasil, mas ele não estava em Nebulosa. 
 
A Casa de Recuperação Maria Madalena era o lugar onde Paulo Rodrigues, o único colega próximo de Lilian presente na foto que estava acessível, morava há dez anos em Pernambuco. Havia uma matéria com seu nome a respeito de algumas agressões repentinas à pessoas, que uma delas se feriu gravemente e desde então sua mãe escolheu se mudar junto com ele para sua cidade natal.
 
Cobri meu rosto frustrada. Aquela professora que encontrei na faculdade não me ajudou com muita coisa, ela não achou a lista de turma de Lilian de qualquer forma.
 
Suspirei cansada.
 
Meu celular vibrou e eu o atendi ao ver o nome de Carmem.
 
— Alô, mulher? — Falou Carmem do outro lado da linha. — Você tá bem? O que aconteceu que não veio hoje? 
 
— Eu tô bem, só… não acordei bem hoje. — Murmurei. — Eu quero me afundar na minha cama e morar nela por uns dias.
 
— O velho fez alguma coisa com você? 
 
— Não, não é nada disso. Não tem nada a ver com Aiden. — Menti.
 
Suspirei. Mabel caminhou para o sofá com a panela na mão.
 
— Se liga hein? Eu tô com um mau pressentimento, eu vi uma coisa ontem, eu conversei com as cartas e elas me revelaram sobre você. — Ela sussurrou. — Além disso, tenho que falar um negócio com você. É sobre o Roberval. 
 
— O que tem o enviado de Satan? — Perguntei.
 
— Eu queria falar pessoalmente. Posso ir no apartamento? — Carmem estava muito séria. Naquele momento eu já imaginava o pior.
 
— Acho melhor não. — Falei franzindo os lábios. — Eu vou pra sua casa. Pode ser?
 
— Claro, eu só trabalho de noite hoje.
 
Levantei vestindo minhas roupas de frio com o telefone entre o ombro e a orelha. Mabel parou de comer e me olhou já se levantando.
 
— Onde a Senhora vai? — Ela perguntou com a boca cheia parecendo um esquilo. 
 
— Você não vai comigo. Pode continuar aí comendo e… — Olhei para a reprise de caminho das índias que Mabel estava olhando com tanta atenção. — Assistindo sua novela. 
 
Carmem ficou calada no telefone por alguns segundos.
 
— Mas gente, você já tá passando o rodo em outra pessoa? — Carmem riu. — Já entendi o motivo de ter ficado em casa.
 
— Não, não é isso. — Respondi de imediato vendo o rosto confuso de Mabel. — É uma coisa diferente.
 
Desliguei o telefone. Mabel me olhou indignada enquanto eu preparava minha mochila pequena nas costas.
 
Mabel estava me olhando como se esperasse algo.
 
— Senhora, só te lembrando, meus braceletes e gargantilhas não estão aqui para nada. — Murmurou. 
 
— Mabel, é sério. Você pode ficar aqui. — Mesmo convivendo com Mabel, havia algo que eu deveria me lembrar bem: Ela me deu uma boa prova de que fazia tudo por conveniência e interesse. 
 
Me perguntei se ela diria a Pietro que eu estava desconfiando da família dele, que estávamos debaixo das garras de Eris e fazendo suas vontades, se ela diria algo que fizesse me atrapalhar caso lhe prometessem um cargo maior na família que mais parecia um sistema de castas ou uma bisbilhotada na tal Arcadia.
 
É claro que ela diria, principalmente por aquele último.
 
— Senhora, eu preciso ir aonde a senhora for. — Reclamou. 
 
— Eu vou na casa da minha amiga, Mabel. Você não precisa vir comigo. — Revirei os olhos abrindo a porta. 
 
— Esta maldita gargantilha e estas pulseiras não estão aqui para nada, Senhora! — Repetiu.
 
— Eu preciso ter uma conversa em particular com minha amiga. Tenho certeza de que você não vai querer ficar com os quatro seguranças de Aiden esperando na porta dela. — Eu já volto!
 
Bati a porta e tranquei Mabel lá dentro antes que ela pudesse vir ao meu encontro. Escutei alguns gritos de dentro do apartamento e a cara feia de um dos moradores que estavam saindo de casa naquele momento.
 

Amélia, Da Cor do Sangue ‐ Livro O1 {CONCLUÍDO}Onde histórias criam vida. Descubra agora