Capítulo Nove - Nova Versão!

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[Hall Endres]
 
 
— Onde você está? — Incrivelmente, quem faz essa pergunta é ela, não eu.
— Estou indo até aí — respondo.
Aperto o telefone com força contra a bochecha e a orelha, sentindo meus dedos serem machucados e minha pele ficando quente. Eu não estava com vontade de chorar, como imaginei que ficaria, na verdade, não há nada que eu sinta mais do que raiva. Ela vendeu ou guardou nossas coisas e agora está longe da nossa casa com Nilton atrás dela? Já sei de quem puxei meus impulsos.
— Hall…
Não deixei que ela continuasse.
— Eu não acredito… A senhora está mesmo na casa da minha tia? Onde está de verdade?
Ouvi o barulho característico de um taco de madeira acertando uma bola de sinuca, então seguinte a esse som: copos de vidros se chocando uns contra os outros, algumas risadas exageradas e bêbadas.
Minha mãe estava em um bar.
— Não acredito — sussurro.
Isso a deixa furiosa.
— Você percebe a sua burrice que foi fugir de casa assim, igual uma criança? Você tem noção de como me deixou preocupada?
Não me lembro de a senhora ter me ligado, mãe.
— Eu não aguentei mais ficar naquela casa. Você não sabia o que eu estava passando.
Dessa vez quem ficou furioso fui eu.
— Como eu posso não saber? Eu estava lá quando papai morreu, eu fui ao velório dele, eu também o perdi no mesmo dia que você. Eu estava lá quando Nilton levantou a mão para nós, quando trouxe os vícios dele para nossa casa. Quando armava cada barraco com os vizinhos, ameaçando cada um que o encarasse com uma faca ou fingindo que tinha uma arma guardada, ou sei lá! Eu vivi tudo isso com você mãe! Eu sei. Eu sei de tudo isso.
Havia uma enorme vontade dentro de mim de chamá-la de egoísta, mas não fiz isso. Eu ainda não estava domado pela raiva o ponto de ter que ser agressivo com as palavras mais do que isso. Minha respiração estava irregular e meu corpo estava quente demais, senti que meus dedos derreteriam e o celular cairia no meu colo, ativando o viva-voz apenas como numa cena de filme, então minha mãe poderia gritar comigo. Eu sabia que ela queria.
Entretanto, minha mãe ficou calada. Mortalmente calada, deixando que eu absorvesse de novo os barulhos de um bar que não sei qual é. Onde é. Eu queria poder encontrá-la, e sei que quero fazer isso por motivos totalmente egoístas, venenosos e orgulhosos da qual eu mesmo não me orgulho. Eu queria apenas o prazer de vê-la sentada a uma mesa amarela de bar, sozinha, com uma garrafa ou várias latinhas de cerveja na frente dela, tendo bebido quase tudo, o que a deixava com os olhos levemente avermelhados e as bochechas coradas. Seu cabelo estaria despenteado e ela provavelmente estaria olhando para o nada, mordendo a unha até a carne. Eu chegaria no exato momento em que ela estava pensando em pedir mais cerveja ou algo mais forte ao garçom. Eu a veria, então sorriria, olharia para seus cabelos que são da mesma cor marrom que os meus, e diria que eu sabia, sabia que ela estaria em uma mesa de bar, ignorando a maior parte da sua realidade porque não gostava do que vivia.
Eu não poderia culpá-la, mas não estou disposto a ser condescendente por isso. Eu também estou sofrendo. E quero provar para ela que me mantive forte por tempo demais, um tempo que ela não faz nem ideia.
Eu queria chegar logo até ela.
— Onde a senhora está, mãe?
A escutei beber. Ouvi sua garganta fazer barulhos.
Estremeci.
— Mãe… — Eu sabia que ela não poderia estar longe, mas não posso simplesmente tentar adivinhar. — Me diz onde…
Ela desligou; e a última coisa que ouvi foi um soluço do outro lado da linha.
Coloquei o celular no meu colo e fechei os olhos com força, a queimação das lágrimas estava sendo afastada quando escutei a voz de Diego ao meu lado. Ele ainda dirigia, ele ainda estava aqui. Eu havia me esquecido completamente. O cheiro dele havia se tornado bom de respirar sem relevância alguma, como o vento.
— Onde ela está? Ela disse?
— Não.
— E para onde você vai? Podemos voltar e…
Podemos.
Não, não podemos nada.
— Na casa da minha tia — o corto imediatamente —, ela vai me receber.
— Por que não foi para lá desde o início? Desculpe eu… Não quero ser intrometido, é que sua mãe falou… Deu para ouvir daqui.
O encaro.
— Não tem problema. Eu não fui para lá porque seria o primeiro lugar que minha mãe procuraria. — E aquilo pareceu bastar para Diego, o que é ótimo.
Ele continuou acelerando, seguindo minhas ordens de onde virar, para onde ir. Chegamos a uma rua um pouco mais ridícula que a minha, onde ninguém estava nas portas de suas casas, observando quem chegava ou ia. A rua estava silenciosa como um filme de faroeste. A casa da minha tia é a última, perto de um posto de gasolina 30 de Setembro, que brilha em laranja. Diego estaciona em frente ao portão dela. A porta está fechada.
— Ela está em casa?
— Deve estar na igreja, mas logo ela chega. Minha tia mora sozinha.
— Ah.
Então, nada.
Estávamos tão silenciosos quanto a rua no exterior. Eu queria abrir as janelas para respirar de verdade e não apenas aspirar o ar-condicionado.
— Pode ir, se quiser. Eu consigo ficar aqui sozinho. Acho que ela deixa o portão aberto caso…
— Vou ficar — declarou.
Não havia nada que eu pudesse fazer quanto a isso, acho.
Cinco minutos depois, ele indaga:
— Sinto muito por seu pai. Lo siento.
Dou de ombros. Eu não queria lembrar do meu pai agora.
— É verdade que na Espanha vocês comemoram o Dia de Finados fazendo festas?
Diego levanta a cabeça e dá uma gargalhada rouca.
Eu gostava de vê-lo gargalhar.
— É verdade.
— Achei que era uma coisa estereotipada. Sabe?
— É verdade. Dia de Los Muertos é uma celebração em meu país natal; levamos velas e flores aos túmulos, mas festejamos também. Para nós, morte não significa ausência, mas a presença dos nossos entes mortos. Acreditamos que nossos laços são tão gigantescos que eles possam retornar da paz em que vivem para ficar conosco por um dia. Para facilitar el retorno de las ánimas a la tierra, se esparcen pétalos de flores de cempasúchil.
Um arrepio percorreu minha espinha. Foi como receber um beijo gelado. Foi como… Como se minha alma fosse tocada. Não sei definir como me senti, mas foi bom nos primeiros segundos; parei de pensar no que poderia ser isso porque, faço ideia, do que seja sim. Não sou ingênuo ao ponto de não pensar que Diego falando espanhol quando estamos sozinhos em um carro onde ninguém pode nos ver, me deixou excitado.
— O que é isso? Essa última coisa que você falou? Se eu tentar pronunciar minha língua vai ficar com cãibra.
— Cempasúchil. Calêndula. Usamos as pétalas delas para facilitar o retorno dos mortos até nós. Foi isso que disse.
— Ah! Só para você saber, eu amo Festa no Céu, é um dos meus filmes preferidos.
Diego franziu o cenho apara o para-brisa. Ele estava analisando o céu.
— Nunca ouvi falar — e dá de ombros.
— Sério? — Minha voz saiu esganiçada pela perplexidade.
Como ele nunca viu esse filme se é… bem, ele. De onde veio e o que sabe!
Mais uma vez ele dá de ombros, não se importando tanto assim para o fato de eu estar praticamente de boca aberta.
— Não tenho tanto tempo para assistir filmes, Hall — ele disse, como se aquilo fosse explicação suficiente. A maior de todas as explicações.
Reviro os olhos.
— Desculpe Senhor Ocupadíssimo. Só acho que esse filme era conhecido por todo mundo.
— Aham.
Ele tinha um sorrisinho nos lábios. Convencido de que ficou com a última palavra.
Infelizmente ele estava certo — dessa vez.
Minha tia acaba de cruzar a rua e estou vendo ela vindo na nossa direção, estreitando os olhos para saber de quem seria o carro parado em frente a sua porta. Daqui a alguns passos, ela me veria, então saberia o que eu vinha fazer aqui.  
Minha tia Nádia é uma boa mulher, realmente é… o problema maior dela é sua obsessão por tudo o que acha correto, e com isso quero dizer que ela não gosta das coisas fora das coisas que aprendeu quando era criança. Minha mãe contou que quando elas eram pequenas, iam para a igreja três vezes na semana, todos os meses, principalmente em dezembro. Minha avó era uma devota fervorosa, mas não conseguiu fazer com que minha mãe fosse assim também, mas minha tia Nádia…
Ela não gosta de pessoas gays, não gosta de homens que se depilam e, sinceramente, parece não gostar de homem nenhum. Ela fica namorando alguns homens, mas nada dura muito. Eles querem apenas o dinheiro dela e quando conseguem o que querem por um mês ou dois, vão embora num piscar de olhos. Quando eu era criança, odiava vir para os aniversários dela porque passávamos quase uma hora inteira rezando antes de irmos comer, e ninguém podia se divertir, eu era a única criança já que ela não tem filhos. Na verdade, ela decidiu não os ter, por algum motivo.
— Aquela é minha tia — digo.
Diego a analisa. Seu olhar é tão desconfiado que quase chego a ler seus pensamentos de que ela seria uma boa pessoa de verdade.
Sem pensar, toco em seu ombro.
— Obrigado por tudo. De novo. Tenho que ir. Estou sem celular no momento, mas me siga no Instagram e podemos conversar, tudo bem?
Ele assentiu. Seus músculos estavam tensos, e perceber isso foi muito fácil, dava para ver que ele estava incomodado com meu toque.
Inconveniente queimou na minha pele.
Retirei a mão imediatamente e abri a porta do carro. Acenei para ele antes de fechá-la e esperar minha tia chegar até mim, e pensei, ouvindo o carro partir: Ah, tia, esses vão ser nossos piores dias juntos.

Minha Salvação | Série Irmãos Laurent-(Livro 1) (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora