fim

156 15 4
                                    

Antonella

Eu não tinha os genes de nenhum dos meus pais, mas havia aprendido, por pura convivência, a ser desorganizada como Kelvin.
Já havia revirado meu quarto quase inteiro e nada.
Não era possível perder uma peça de roupa tão fácil assim.
Não teria jeito, teria que recorrer ao meu pai para achar aquele vestido.
— Pai! — chamei usando meu mecanismo super moderno de identificar meus pais só pelo chamado.
Só "pai" era Ramiro quem eu chamava e "papai" era Kevin. Só assim pra não precisar lidar com meus dois pais perguntando "chamou?".
Fazendo minha melhor carinha de cachorro abandonado, espero meu pai aparecer na porta do quarto. Ele, pelo estado do cômodo, já sabia o que era.
— O que você perdeu dessa vez? — recostou no batente da porta.
— Foi um vestido... — respondo com um sorrisinho tímido no rosto.
— Como ele é?
— Ele é branco, só tem alça de um lado do ombro e tem um detalhezinho dourado assim — apontei a região onde o detalhe ficava.
— Filha, esse vestido você usou tem pouco tempo, ainda não dobrei as roupas limpas
— Ah, então é por isso que eu não achei — bati com os braços na lateral do corpo — Tudo bem, paizinho, obrigada
— Depois eu busco pra você, ta bom? — ele caminha até mim, dando um beijinho em meus cabelos — Mas você precisa mesmo levar ele? Digo, você vai precisar dele lá?
— Vou pai, preciso estar bem vestida para frequentar a faculdade de moda
— Eu ia com qualquer roupa quando tava na faculdade. Se pudesse ir de pijama, melhor ainda
Dei risada.
— Você é bobo
— Eu tava cansado, tinha acabado de ganhar um presentinho pequeno assim — ele fez com as mãos — que mamava muito, sujava muita fralda e chorava horrores
O empurrei com o ombro.
— Sem devoluções, cara. Você ganhou um presentaço
— Não sei se foi tanto assim — ele franziu o nariz e fiz minha melhor expressão indignada.
— Como você ousa?
Ele da risada, me trazendo para junto dele em um abraço incrível que só Ramiro Neves tinha.
— Foi o melhor presente da minha vida
Minha mão foi automaticamente para a barba do meu pai, que já apresentava alguns fios brancos, mas nunca deixava de estar macia e cheirosa.
— Ah, eu quero também — Kelvin falou entrando em meu quarto e se enfiando no abraço.
Meus pais eram do tipo extremamente carinhosos e verbalizavam seus sentimentos. E assim eu fui ensinada, o que era sempre maravilhoso.
Não tinha sensação melhor que abraçar quando tivesse vontade ou dizer um "te amo" no meio do dia, sem um motivo especial.
Cresci no melhor ambiente que eles puderam proporcionar e estar indo embora não era muito fácil, confesso.
Pensei muito quando recebi o resultado do pedido de aceitação na Escola de Moda, mas desde o primeiro segundo, antes mesmo de eu enviar o pedido, meus pais me apoiaram e planejaram tudo comigo. Mesmo que eles não quisessem que eu fosse e eu também não queria deixá-los. Se eu pudesse, nunca mais sairia debaixo das asas deles.
Mas eu tinha um mundo inteiro pra conquistar ainda e estava na hora de começar.
— Vocês me ajudam a terminar as malas? — perguntei ao me desvencilhar dos braços.
— Claro, mas antes, vamos almoçar? Depois a gente termina isso — Kelvin passou um dos braços ao redor do meu pescoço.
Ele era meu pai, mas tínhamos quase a mesma altura. Eu era uns 5 centímetros mais baixa, o que era bem engraçado e se tornava mais engraçado ainda quando ele me tratava como um bebê. Segundo eles dois, os filhos podiam crescer, mas sempre seriam bebês aos olhos dos pais.
Fomos até a cozinha e eu senti meu peito já antecipar a saudade.
À mesa estavam minhas comidas favoritas: bife com batata frita e para complementar, arroz branquinho e feijão. Coisa mais brasileira, impossível.
De sobremesa, era óbvio que meus pais haviam comprado sorvete. Desde que me lembro, sou movida à todos os sabores de sorvete possíveis.
Ajudando Ramiro na louça, vou contando animada para ele sobre minhas expectativas com relação ao curso de moda e reparo em seu olhar saudoso acompanhado de um sorriso triste.
— O que foi? — perguntei.
— Nada, eu só tava te admirando, meu amor — ele enxugou as mãos no guardanapo — Você cresceu tão rápido e já vai sair de casa, pra outro país ainda, não sei nem se meu coração aguenta tudo isso
— Ah, paizinho — dou risada para evitar começar a chorar e abro os braços, envolvendo-o em um abraço apertado — Ta difícil pra mim também, não queria deixar vocês nunca — engoli o bolo dolorido na garganta — Mas eu só vou lá estudar e volto, eu juro
Ramiro se afasta do abraço, tocando em meus cabelos e me olhando como se quisesse decorar cada pequeno detalhe.
— Não volta, não — ele negou com a cabeça, a voz falhando — Você vai sair pra conhecer o mundo, mas também pra se conhecer. Vai estudar, se formar, trabalhar, construir o que é seu e aqui vai ser só a casa dos seus pais, você não vai nem querer saber desses velhos chatos
— Claro que não, para de ser bobo — dei um tapinha em seu braço, sentindo o ardor nos olhos — Aqui vai ser minha casa pra sempre, pai. Entenda de uma vez por todas: — segurei seu rosto entre minhas mãos — Vocês dois são os grandes amores da minha vida, são o meu coração inteirinho e até um pouco mais e eu jamais, pai, jamais vou esquecer de vocês, ta legal? Não volta a repetir isso nem em pensamento porque eu sou vocês e vocês sou eu
— Ô, meu amor... — ele me puxou para junto de si, fungando — Te amo tanto, minha bonequinha
— Também te amo, paizinho
— Vou sentir saudades de você ouvindo Taylor ou dizendo por aí que queria ser a Barbie moda e magia — ele falou, dando risada — Agora você vai ser...
— Eu vou, né? — sorrio de olhos fechados.
Ele desfez o contato, me dando um tapinha nas costas.
— Vai lá terminar sua mala que já levo o vestido que você ta procurando
Mandando um último beijinho pra ele, volto para meu quarto, bufando por conta da bagunça que eu havia feito e no trabalho que seria arrumar tudo.
Demorou mais do que eu pensava e me vi ainda terminando de colocar tudo no lugar após o jantar.
Meus pais foram dormir e eu resolvi fazer skin care quando o relógio marcava quase meia noite.
Aproveitando enquanto a máscara secava em meu rosto, ligo para meu melhor amigo.
— O que é isso, Antonella? — Ruan pergunta, franzindo o nariz e se aproximando da câmera para me olhar.
— Máscara, gostou?
— Não — ele negou com a cabeça.
— Não importa, minha pele vai ficar ótima quando eu tirar isso
— Antonella, sua pele é ótima — ele falou como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
— Eu só quero garantir que vou chegar em perfeito estado em Paris. Aliás, você vai no aeroporto me ver, né?
— Já disse que eu não sei
— Ruan, é a minha despedida, você não vai nem me dar um abraço? Dizer um tchau?
— Não quero que você vá, sou contra essa viagem desde sempre
— Contra o meu sonho?
— Tem faculdade de moda no Brasil também
— Mas não é a mesma coisa
— Ta bom, Antonella, não quero brigar com você antes de você ir
— Eu não quero brigar, quero conversar com você
— Mas a gente já teve essa "conversa" — ele fez aspas com os dedos — muitas vezes e nunca terminamos porque sempre discutimos e fico bolado quando a gente fica sem se falar
— Porque você para de falar comigo e não eu com você. Você sabe que eu sou do diálogo, Ruan
— Ta vendo? Começamos já
— Não começamos nada
— Antonella...
— Ruan...
— Nella, eu só não quero ficar longe de você, ta? Não tem absolutamente nada haver com o seu sonho de estudar fora, é claro que eu quero você sempre nos melhores lugares porque você é foda pra caralho no que faz
— Então o que é?
— Passei os últimos 14 anos da minha vida contigo do meu lado e perder isso me deixa em pânico, Antonella. Já perdi gente demais na minha vida até chegar nas pessoas que tenho hoje e, de verdade, não quero perder mais ninguém
— Você é maluco? Claro que não vai me perder, eu vou voltar
— E se não voltar?
Rolei os olhos.
— Deus do céu, você e meu pai fazem o mesmo drama, parece até que eu tô mudando de planeta
— É quase isso
— É só Paris e por alguns anos
— Anos é muita coisa
— Eu volto para os feriados, cabeça de ovo — falei, fazendo-o mostrar a língua quando citei o apelido que dei  à ele quando teve que raspar o cabelo para servir ao exército quando completou 18 anos.
— Não é a mesma coisa
— Ruan, quer saber? Então não vai me ver, nem aparece no aeroporto amanhã, faz o que você quiser, ta? To indo dormir
— Nella...
— Não, ta tudo bem. Se você não quer, não vou te forçar
Levantei da cama, desligando a chamada e colocando o celular na penteadeira, entrando no banheiro para lavar o rosto.
Me sentindo limpinha e com a pele hidratada, fecho as cortinas ao notar que relâmpagos iluminam meu quarto de tempos em tempos.
Apesar de não temer mais as tempestades fortes, relâmpagos poderiam ser bem assustadores.
Fiquei por um tempo sentada na cama, sem sono algum, apenas checando várias vezes uma lista mental de coisas que eu precisava fazer assim que chegasse em Paris.
Apesar de ter uma tutora brasileira me esperando, eu precisava manter tudo em ordem para não esquecer nenhum documento importante.
Ruan insiste em ligar e mandar mensagens mas o ignoro. Não era a primeira vez que tínhamos uma conversa sobre minha ida à Paris.
E era óbvio que eu entendia os motivos dele, eu também sentiria muita falta de tudo, mas era um sonho meu e eu esperava que ele pelo menos colocasse essa parte na balança também. Não era justo querer que eu ficasse só porque ele não queria ficar longe de mim.
A chuva lá fora aumentou bastante e, como eu já esperava, Kelvin veio até meu quarto checar se eu estava bem.
Diante das minhas crises durante as tempestades, meus pais logo me colocaram na terapia, o que foi muito importante para que hoje eu não temesse mais nada quando a chuva forte atingia o chão. Mas mesmo assim, meu pai sempre vinha me ver, só pra ter certeza.
— Tá acordada ainda, amor? — ele perguntou fechando a porta atrás de si.
— Tô, acho que é o nervosismo
— Você tá bem? — ele caminhou até mim e se sentou ao meu lado na cama, me envolvendo em um braço, me deixando deitar em seu ombro.
— Mais ou menos
— Quer falar?
— Ruan e eu estamos de mal
— Por que, filha?
— Mesmo assunto de sempre: a viagem
— Achei que vocês já tinham se resolvido quanto à isso
— Não... — neguei com a cabeça.
— Será que ele não tá... sei lá, com medo de você encontrar alguém lá?
— Não pai, claro que não, o Ruan é meu amigo
— Você jura? — meu pai falou em um tom irônico, pois já havia flagrado nós dois nos beijando pelos cantos da casa.
Mas não era nada mais do que curiosidade. Desde sempre, pessoas diziam que parecíamos um casal e provavelmente seríamos um. Aos 16 anos, resolvemos testar essa química algumas vezes, mas o resumo de tudo isso foram alguns beijinhos e mãos bobas que não resultaram em nada.
Depois daí, resolvemos ser só amigos mesmo e assim ficou.
— Pai, o que você viu não foi nada, pura curiosidade. Somos amigos mesmo
— E o Ruan sabe disso?
Peguei uma almofada em formato de coxinha que roubei de Ramiro e bati contra Kelvin, fazendo-o rir.
— Tá, não vou tocar nesse assunto — levantou as mãos — Mas me ouve, tô achando que vocês não estão na mesma página
Estalei a língua no céu da boca.
— Bobagem — neguei com a cabeça.
— Se você diz... — Kelvin deu de ombros.
Depois de momentos de distração apenas jogando conversa fora, meu pai me fez dormir com um carinho suave nos cabelos.
Quando voltei a abrir os olhos, já era dia e Ramiro estava bem próximo de mim, sussurrando um "bom dia" animado e mostrando a bandeja de café da manhã que havia trazido para mim.
Desejei que aquela manhã com meus pais passasse devagar, só pra eu aproveitar mais cada segundinho com eles.
Mas logo eu estava no carro com minhas malas, à caminho do aeroporto.
Desde ontem que não respondo as mensagens de Ruan e ele também não havia feito mais nenhuma tentativa.
Se ele veio?
Bem, isso é história pra contar em outro momento...

https://twitter.com/aukelmiro/status/1779254197147381767?t=kJKl0H6OWuRzUUHvEV8bKw&s=19

overnight (não revisada)Onde histórias criam vida. Descubra agora