ainda bem que é

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Kelvin

Ramiro era uma das pessoas mais pacientes do mundo. O que equilibrava muito a nossa relação, pois o que sobrava nele, faltava em mim.
Eu estava bufando há uns 15 minutos no carro do corretor de imóveis e isso estava deixando até meu marido puto. Mas como o perfeitinho que era, não queria demonstrar que minha irritação o estava contagiando.
Só que Ramiro atuava muito mal, o que resultou em um sorriso muito esquisito em seu rosto e acho que até pude ver um olho tremendo.
Era a penúltima das casas que iríamos visitar e eu já estava desanimado. A casa perfeita nunca era nenhuma das que chegávamos para visitar.
Uma era grande demais, outra pequena demais, o quintal era minúsculo, ou o tamanho era perfeito, mas não tinha quintal. Simplesmente idealizei uma casa que não existia e agora estava frustrado.
O corretor parou o carro, vestindo novamente o sorriso muito branco para nos passar um ar de confiança que eu sabia que não existia mais ali há horas.
— O bairro aqui é muito bem localizado, senhores — ele falou ao abrir a porta do carro — Temos nas redondezas shoppings, escolas, parques, inclusive diversas opções de restaurantes com culinárias de diversos outros países. O ambiente é familiar, temos também muitas es... — o interrompi.
— Moço, desculpa, podemos ir para a parte da casa logo? — tentei soar o mais doce possível.
— Ah, claro — ele riu, um pouco sem graça.
Nos guiou até a casa onde havia a placa de venda, que já havia nos mostrado a frente. Era bem bonita mesmo.
Esperamos enquanto ele abria a porta e bati o pé no chão, realmente bem irritado por não ter encontrado a casa e somava ao fato de eu estar com fome há muito tempo. Meu corpo era pequeno demais e não sobrava espaço para carisma.
Mas foi só passar pela porta, que senti o mundo parar e a gravidade deixar de existir. Eu estava flutuando ali naquele espaço vazio e minha mente conseguiu visualizar perfeitamente o tapete, o sofá, a lareira ligada, eu sentado entre as pernas de Ramiro, tomando um vinho e Antonella no sofá com aquele unicórnio que nunca saiu da posição de brinquedo favorito.
Olhei pela janela mais próxima e pude visualizar com facilidade uma parte do quintal de grama verde.
— É essa — falei, chamando a atenção dos outros dois homens.
— Como? — Ramiro franziu o cenho.
— Essa é a nossa casa
— Você nem viu ela inteira ainda, amor
— Não importa, vai ser essa daqui
O corretor sorriu.
— Essa é uma ótima notícia, na verdade. Porque não vamos conhecer melhor a futura casa de vocês, hum? — apontou para o corredor que levava até o quintal.
Saltitei por cada cômodo, encontrando perfeição em cada mísero detalhe de cada cantinho daquele lugar.
O quintal era mais bonito do que eu pensava, com uma árvore grande e forte o suficiente para fazer um balanço para Antonella. Quase a podia ver correndo por ali.
Segurei no braço de Ramiro e assim que o corretor falou o último detalhezinho sobre aquele canto, soltei:
— Vamos ficar com ela
— Amor, você tem certeza? Ainda tem casa pra ver
— Você não gostou dessa? — perguntei preocupado e me sentindo um péssimo marido ao tomar uma decisão antes de consultar a opinião de Ramiro.
— Pelo contrário, eu amei a casa, só quero me certificar de que você escolha bem, que verifique todas as possibilidades
— Eu sei, eu só... — olhei ao redor, balançando a cabeça — senti que aqui fosse minha casa mesmo, o nosso lugarzinho
— Então vai ser essa? — o corretor perguntou e pude ouvir seus pensamentos de comemoração.
— Vai ser essa — confirmei, dando pulinhos no lugar antes de começarmos a conversar sobre o processo burocrático.
Depois de tratar grande parte da papelada, pedimos um carro até o meu antigo apartamento com a missão de começar a empacotar minhas coisas.
Dei de cara com o quadro grande da minha drag, sorrindo para a outra realidade de onde a estou olhando.
— Vai manter esse quadro? — Ramiro perguntou parando atrás de mim.
— Ah, de jeito nenhum — dei risada, negando.
— A Antonella ama esse quadro
— Eu sei, mas não vou colocar um quadro gigante com a minha cara na nossa casa nova
— Eu colocaria
Me virei para ele, tocando seu rosto.
— É um pouco brega, eu confesso, mas achei bonitinho — apertei suas bochechas, beijando o biquinho que havia se formado — Da pra acreditar? — me pendurei em seu pescoço, jogando o peso do meu corpo para trás — Estamos prestes a nos mudar e ir morar juntos
— A gente já mora juntos
Me endireitei, ficando apenas com os braços apoiados em seus ombros.
— Eu sei, mas na sua casa, aquela que você escolheu pra ser sua e agora a gente vai pra um lugar nosso, que escolhemos especificamente para viver juntos
Ramiro deu um sorrisinho e pela sua expressão, estava pensativo.
— Quando eu acho que não tem como ficar melhor, você vem e me surpreende mais — ele falou e eu pisquei os olhos — Posso perguntar uma coisa?
— Uhum
— O que aconteceu naquele dia que você entrou no carro chorando?
Desviei o olhar, me desvencilhando de seu toque.
— Não foi nada
— Amor, não faz assim, eu sei que você não ta me dizendo a verdade
O tom doce de sua voz era como meu remédio da verdade, pois ele só precisou falar uma vez para que eu abrisse minha boca.
— Minha mãe, ela... voltou a me procurar
Vi ele ficar alerta.
— E porque não me chamou, amor?
Neguei com a cabeça, estalando a língua no céu da boca.
— Ela é um cão que ladra, mas não morde
— Mesmo assim, eu sei que ela mexe emocionalmente com você. E o que ela queria de você? Mais uma proposta de casamento?
— Não. Dessa vez veio me dar conselhos
— Conselhos? — ele franziu a testa.
— É, sobre não me meter em um casamento sem amor ou não tratar minha filha mal, ser um bom pai
— Do nada isso?
— Do nada — assenti — Mas eu sei o que ela quis dizer com tudo aquilo
— E o que era?
— Ela não quer que eu seja como ela e termine do mesmo jeitinho que ela: infeliz
Ramiro se aproximou em passos curtos, tocando meu queixo.
— Acho que nem precisa explicar muito, mas você sabe que eu te amo demais e a última coisa que falta nesse casamento é amor
— Eu sei disso — sorri.
Eu tinha mais certeza daquilo do que qualquer coisa no mundo inteiro.
— E sobre você ser um bom pai... também não preciso dizer muita coisa, né?
Dei uma risadinha, me sentindo tímido com o elogio.
— Não existe a menor possibilidade de eu terminar como ela, amor — fiz carinho em seu rosto — Começando pela parte de eu ter me casado com você porque te amo, minha mãe casou por interesse e deu no que deu
— Coisa que não existe entre nós
— Até porque eu era um pobre falido quando nos conhecemos, você não tinha no que se interessar — dei risada — E meu único interesse em você, naquele dia, era esse corpinho aqui — dei toquinhos com o indicador em seu ombro — E a Antonella também
— Ela é sua desde o primeiro momento
— Muito louco como tudo isso aconteceu, né? Sabe o que eu acho?
— O que?
— Que eu ia me apaixonar por você de qualquer jeito
— Será?
— A Nella ia fazer a gente se aproximar, ela era a minha aluna favorita, confesso, e falava demais como você era o melhor titio do mundo
— Mas a gente nem ia ter tanto tempo pra se conhecer. Acho que o que nos aproximou foi o primeiro dia, no Naitandei
— Mas aquele dia foi completamente carnal
— Acho que me apaixonei por você ali
Dei risada, dando um tapa no ombro de Ramiro.
— Besta
— É sério
— Claro que não, amor
— Por que não?
— Porque não — dei de ombros.
— Você não acha possível eu ter me apaixonado no primeiro dia?
— Não, aquele dia foi muito coisa de pele, não soube nem seu nome direito
— Amor à primeira vista
— Você não se apaixonou por mim, Kelvin, à primeira vista — semicerrei os olhos — Você gostou da drag, seu espertinho
— E agora tenho os dois só pra mim, olha só que sorte
— O Kelvin, né? A drag vai ser do mundo a qualquer momento
— Não sei se vou conseguir te compartilhar, não
— Que isso, ciúmes? — coloquei as mãos na cintura.
— Não to preparado pra ver outros babando na minha mulher
— Você fica tão gostoso possessivo
Ramiro deu risada.
— Vamos logo começar a empacotar essas coisas — ele mudou de assunto, me dando um tapinha na bunda para começarmos os trabalhos.
Era meio esquisito acessar coisas do Kelvin solitário que costumava quase nunca parar nesse apartamento.
Diversas coisas foram para a caixa que iria para a doação, elas simplesmente não faziam mais sentido pra mim.
Honestamente não sinto falta desse Kelvin sozinho. A mínima menção de revisitar esse local de solidão me fazia sentir como se tivessem me tirado um braço ou uma perna. Era incompleto.

 Era incompleto

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overnight (não revisada)Onde histórias criam vida. Descubra agora