CAPÍTULO 41

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"Poço, lado sujo, cria do descaso, alimentando folhas em branco e preto. Outra epidemia desanima quem convive com o medo. Botões, atalhos amplificam a distância e a preguiça de estar lado a lado veste a armadura, este é o poder solitário." - O Rappa


ELISABETTA

Quando respirei fundo, me enchi de uma coragem que eu não tinha. Nunca tive. Naquele momento, eu não pensei em mais nada e em mais ninguém. Ignorei meu passado descendo e subindo aquela ladeira, ignorei meu presente com as pessoas que eu amo, ignorei o futuro que eu queria. Apenas aquelas quatro crianças importavam e foi pra isso que eu subi aquela ladeira e as escadarias do Casarão.

Na varanda da construção de mais de cem anos eu encarei o mundo lá embaixo. Os traficantes, as barricadas, os policiais. Com as mãos pra trás, em uma postura militar tradicional, eu me blindei de todo e qualquer sentimento que pudesse me fazer recuar. Eu me recusava a vacilar. Se eu entrei, eu entrei pra ganhar.

— Você sabe o que fez, quando bateu o pé. Diaba? — a voz grave de Ricardo Braddock atingiu meus ouvidos, enquanto eu ainda observava de longe as pessoas que esperavam por nós

— E você? — rebato a pergunta

Eu o encaro, nós dois frente a frente. Ele ainda parece surpreso, mas faz um gesto positivo com a cabeça.

— Ogum e Iemanjá. — ele diz puxando sua guia pra fora da camisa, exibindo as miçangas — E você?

Eu decidi seguir meu coração quando liguei pro Fábio e fiz questão de estar aqui. Eu vou confiar na minha intuição e deixar meus instintos me guiarem. É pelas crianças.

Em um gesto rápido eu desabotoei o primeiro botão da farda, acima do colete e puxei a guia de Exu, assim como puxei a guia traçada. Ele arregalou os olhos.

— Oyá e Xangô. — o olho nos olhos

Ele observa as miçangas em meu pescoço com curiosidade, parece pensativo.

— Isso explica muita coisa. — ele coça a cabeça e eu franzo o cenho — Essa tua marra toda. Ninguém lá embaixo faria o que tu tá fazendo agora, tá ligada?

— É, eu tô ligada sim. — murmuro — O nome disso é burrice.

— Ou coragem. — ele dá de ombros

— Ambos andam lado a lado. — suspiro — E as crianças?

— Eu já mandei buscar. — diz — Deixei elas nos fundos do Casarão, pro caso de um tiroteio começar.

Assenti com a cabeça. Eu sei que traficante também é gente, mas estou aliviada de perceber que ele também está preocupado com as crianças.

— Esse arrastão não é coisa minha e nem da Cabeluda. — ele se explica — Esses caras são tudo aviãozinho e vieram pra cá no desespero. Ninguém da facção tá compactuando com isso.

— Eu já te disse que hoje eu só quero as crianças. — o encaro

— Mas o BOPE quer os caras. — me encara — Estão no alto do morro, recebendo um tratamento especial. Vacilaram feio de ir fazer arruaça na rua, mexeram com crianças e ainda trouxeram atenção pra cá. Não era pra saberem onde eu tô.

— Não achou que ia ficar escondido por muito tempo, né? — ergo uma sobrancelha

Ele respira fundo.

— Tu é rodante? — ele pergunta de repente

Rodante é o termo utilizado na nossa religião para as pessoas que recebem as entidades em seu corpo e trabalham com elas.

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