QUARENTA E SEIS

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Desço à cozinha em busca de um pouco de sorvete; sei que um curativo do tipo geladinho e cremoso, não vai sarar minha ferida, mas algum alívio ele há de dar. Retiro um pote da geladeira e aperto contra o peito para tirar uma colher da gaveta, mas deixo tudo cair quando ouço alguém dizer:

— Muito comovente, Emily. Muito, muito comovente.

Curvo-me ao chão, apertando os dedos dos pés praticamente esmagados por um pote de um litro de sorvete, e quando levanto o rosto e deparo com Lillian, sentada em um dos bancos da bancada, pernas cruzadas e mãos delicadamente pousadas sobre o joelho, quase uma dama do século passado.

— Foi tão encantador ver você clamando por Noah depois de fabricar aquela ceninha de amor na cabeça... — Ela ri e me olha de cima a baixo. — Ah, sim, ainda posso ver o que se passa em sua mente. Esse escudo que você providenciou... receio que seja mais fino que o tecido do meu vestido. Quanto a você e Noah... — Ela balança a cabeça. — No lugar de vocês, eu não contaria com um final feliz, do tipo "e viveram felizes para sempre". Porque, você sabe, não vou deixar que isso aconteça. É que tenho dedicado minha vida a destruir você, Emily, e para seu azar ainda sou capaz de fazê-lo.

Olho para ela, tentando controlar a respiração e ao mesmo tempo limpar da mente qualquer pensamento, pois sei que ela poderá usá-lo contra mim. Mas o problema é o seguinte: tentar livrar a mente de alguma coisa é o mesmo que dizer a uma pessoa para não pensar em elefantes: depois disso, ela não consegue pensar em outra coisa que não seja elefantes.

— Elefantes? Jura? — Ela bufa um risinho de sarcasmo, um risinho grave e malévolo que ecoa por toda a cozinha. — Santo Deus, o que será que ele vê em você? — E com uma expressão de desdém varre meu corpo inteiro com os olhos. — Seguramente, não é a inteligência, muito menos o talento, já que ambos ainda não deram provas de existência. Aquela sua ceninha de amor, por exemplo... Tão Disney, tão Sessão da Tarde, tão incrivelmente maçante... Tenha dó, Emily. Por acaso esqueceu que Noah é um homem experiente, que já está por aí há centenas de anos?

— Se você veio atrás de Noah, ele não está aqui — Digo afinal, a voz rouca arranhando a garganta, como se não tivesse sido usada por muitos dias.

Lillian ergue as sobrancelhas e diz:

— Acredite em mim, eu sei onde Noah está. Sempre sei onde ele está. Aliás, é este meu ofício: saber onde Noah está.

— Claro, você é uma psicopata. — Franzo os lábios, sabendo que não é prudente enfrentá-la. Por outro lado, o que tenho a perder? Ela vai me matar de qualquer jeito...

— Psicopata, eu? — Lillian faz uma careta de enfado e examina as próprias unhas, perfeitas como todo o restante. — Dificilmente.

— Bem, se escolheu passar os últimos trezentos anos perseguindo uma pessoa, então...

— Trezentos, não, sua tonta insuportável! —Ela corrige, fulminando-me com o olhar. — Seiscentos!

Seiscentos anos? Sério?

Lillian revira os olhos e fica de pé.

— Ah, os mortais... Tão burrinhos, tão simplórios, tão previsíveis, tão comuns... No entanto, apesar de todas as suas limitações óbvias, por algum motivo você sempre inspira Noah a servir a humanidade, a alimentar os famintos, a combater a pobreza, a salvar as baleias, a reciclar o lixo, a meditar pela paz, a dizer não às drogas, ao álcool, ao consumismo e a todos os verdadeiros prazeres da vida. Sempre uma causa humanitária qualquer, cada uma mais maçante que a outra. E para quê? Será que vocês nunca aprendem? Alô-ou? Aquecimento global! É, parece que não. No entanto... ainda assim, de algum modo sempre sobrevivemos, Noah e eu, a essas pequenas recaídas dele, muito embora eu, às vezes, leve um bom tempo para reprogramá-lo, para trazê-lo de volta àquele Noah hedonista, vigoroso, lascivo e indulgente que conheço e de que tanto gosto. Acredite em mim, você não representa mais que um pequeno desvio de rota. Logo, logo estaremos outra vez no topo do mundo!

Ela vem andando na minha direção, alargando o sorriso a cada passo enquanto contorna a bancada de granito com a graciosidade de um gato siamês.

— Francamente, Emily, também não sei o que você vê em Noah. E não estou falando daquilo que veem todas as mulheres e, verdade seja dita, a maioria dos homens também. Quer dizer, é por causa de Noah que você sempre se dá mal. É por causa dele que está passando por tudo isto agora. Se não tivesse sobrevivido àquele maldito acidente, nada disto estaria acontecendo, estaria? — Ela balança a cabeça, desconsolada. — Justo quando achei que era seguro sair da toca, quando tinha certeza de que você estava morta... de uma hora para outra descubro que Noah se mudou para a Califórnia porque... surpresa, trouxe você de volta! — Novamente ela balança a cabeça e diz: — Era de esperar que depois de tantos séculos eu tivesse aprendido a ser um pouquinho mais paciente. Mas é que você me aborrece demais, Emily! A culpa não é minha, é?

Ela olha para mim, mas não digo nada, ainda estou decifrando o que acabei de ouvir.

Foi ela quem causou o acidente?

Lillian revira os olhos e diz:

— Claro que fui eu quem causou o acidente! Será preciso fazer um desenho para que você entenda? Fui eu quem espantou aquele cervo para a frente do carro, sabendo que seu pai era um boboca de coração mole que colocaria em risco a vida da própria família para salvar um animal. Os mortais são sempre muito previsíveis. Sobretudo os mais certinhos, esses que estão sempre tentando fazer o bem. — Ela dá uma risada. — No fim das contas, foi fácil demais. Nem deu para me divertir direito. Mas uma certeza você pode ter, Emily: desta vez, Noah não vai aparecer para salvá-la. Agora você não escapa.

Procurando algum tipo de defesa a meu redor, vejo o conjunto de facas do outro lado da cozinha, mas sei que não vou conseguir alcançá-lo a tempo. Não sou tão rápida quanto Noah e Lillian. Pelo menos acho que não sou. E não tenho tempo para descobrir.

Ela exala um suspiro e diz:

— Para não restar dúvida, por favor, vá lá e pegue a porcaria da faca! Não sou eu quem vai impedir. — Ela confere as horas no relógio cravejado de diamantes. — Por outro lado, gostaria de começar logo, se você não se incomodar. Geralmente prefiro agir com calma, divertir-me um pouco. Mas hoje... Você sabe, não é? Dia dos Namorados e tal. Gostaria de jantar com meu amor logo depois de eliminar você. — De repente seus olhos ficam escuros e os lábios se retorcem, e num breve momento ela deixa vir à tona todo o mal que esconde em si. Mas a beleza estonteante de sempre retorna segundos depois, é difícil não fitá-la. — Sabe, antes de você aparecer, em uma das suas... encarnações anteriores, eu era o único amor verdadeiro de Noah. Mas depois você tentou roubá-lo de mim, e o mesmo ciclo vem se repetindo desde então. — Com passos curtos e silenciosos, rápidos demais para que eu possa reagir de alguma forma, ela avança pouco a pouco e para bem à minha frente. — Mas agora quero meu homem de volta. E ele sempre acaba em meus braços outra vez, Emily, disso você pode ter certeza.

Estico o braço para pegar a tábua de carne, planejando golpeá-la na cabeça, mas ela se joga sobre mim com tanta força e rapidez que perco o equilíbrio e bato de costas contra a geladeira, imediatamente perdendo o ar e caindo ao chão, desnorteada. E tão logo a cabeça se estatela no granito, sinto um fiapo de sangue quente escorrer do crânio em direção à boca.

Antes que eu possa fazer qualquer movimento para me defender, Lillian vem para cima de mim e começa a distribuir murros e tapas, rasgando minhas roupas, puxando meus cabelos e sussurrando em meu ouvido:

— Não perca seu tempo, Emily. Desista logo e vá embora. Vá se juntar à sua familiazinha feliz, estão todos à sua espera. Você não foi talhada para esta vida. E agora é sua chance de pular fora dela. Não há mais nada que a prenda aqui.

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