Mera Gentileza

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No qual o nosso herói e a nossa heroína se reencontram.


Pelo o que deve ser a milésima vez, ajeito Assassinato no Expresso do Oriente com determinação diante de mim e estreito o olhar nas palavras de Agatha Christie, arregalando bem os olhos.

Deitada na cama, luto com a leitura mais uma vez. Porém, logo constato o inevitável... É impossível encontrar qualquer foco, não importa quantas vezes eu releia o mesmíssimo parágrafo.

Com certa raiva de mim mesma, fecho o livro com força desmedida.

Ando inquieta ultimamente. Cada vez mais, para ser sincera. Desde que Howard saiu da minha vida, não consigo silenciar uma parte insana de mim que insiste em sentir falta dele e perco o foco com muita constância.

Eu devia me livrar desse livro, já que foi um presente do dito cujo e acaba sendo uma lembrança muito forte do que vivemos. Já fiz algo mais difícil, que foi abandonar o emprego na sua mansão. No entanto, justamente por sentir falta do patife e por não ter perspectiva de revê-lo, tampouco de me reaproximar dele, preciso dessa lembrança física para me consolar. O livro me dá a certeza de que nossa relação não foi um sonho, de que os momentos bons foram bem reais.

É egoísta confessar isso, porém a verdade é que não esperava que Howard fosse passar tanto tempo longe de Nova York. E de mim, por consequência.

Sei que fui eu quem deu a última palavra, que deixou claro que estava tudo findado entre nós. No entanto, a mesma parte insana de mim que sente uma tremenda falta dele também se ressente de Howard por ele ter desistido tão rápido de nós.

Porque é isso que ele fez ao viajar e permanecer distante desde então, certo? Ele respeitou minha decisão, o que é louvável; e com isso desistiu, o que é... desolador.

Tão desolador quanto a maneira patética como venho olhando para a varanda a cada noite. Sempre com uma esperança tola de que o patife irá escalar o prédio de novo, adentrar meu quarto através dela a qualquer momento e me convencer de que estou errada, de que não é o fim da linha para nós.

Isso não aconteceu nas últimas trinta noites, óbvio. Não vai acontecer nessa também. Howard não apareceu antes, não irá mudar isso agora.

A essa altura, ele já deve ter me esquecido. Talvez até... tenha encontrado alguma mulher mais interessante aonde está. Ou talvez uma dezena de mulheres fúteis. Talvez elas estejam o seguindo por lá feito um séquito de sirigaitas melosas.

Algo arde no centro do meu peito toda vez que imagino tal cenário. O que é egoísmo da minha parte também, afinal o gênio infame não me deve qualquer satisfação. Se ele estiver se divertindo no meio de um harém odioso... não é mais da minha conta.

Ele me esqueceu e eu devo esquecê-lo também. Preciso tentar com mais empenho até conseguir. Preciso enterrar as lembranças e silenciar qualquer esperança idiota.

Vou me livrar do livro, decido de repente.

Por ora, guardo-o na gaveta da mesinha de cabeceira, mas hei de me livrar dele amanhã. É uma meta importante e será um divisor de águas, com certeza!

Olho uma última vez para a varanda silenciosa.

Um longo momento depois, apago a luz do abajur e viro para o outro lado da cama. Fecho os olhos e me esforço para relaxar, o que não faz muito sentido já que relaxar não deveria exigir qualquer esforço, deveria ser algo natural e... relaxante, afinal.

Reviro-me na cama por minutos torturantes. Que logo se convertem em uma hora inteira de agonia. Talvez mais.

Em dado momento, o cansaço enfim é mais forte do que a maldita insônia e eu apago.

Gênio Infame, Dama MordazOnde histórias criam vida. Descubra agora