|| CAPÍTULO TRINTA E QUATRO ||

826 98 23
                                    








Ao passar dos dias reparei que há uma sequência exata de vezes e tempo em que Ginevra bate na porta. Percebi que o perfeccionismo do Lorenzo é uma coisa herdada da sua família de parte de mãe, não uma obrigação imposta pelo pai.

Ginevra entra no quarto carregando uma bandeja onde tem um copo de vitamina e torradas. Cerro os olhos para ela e resmungo ao me afundar ainda mais nas cobertas. Ela deixa a bandeja ao meu lado na mesinha de cabeceira vazia e pega o controle das cortinas para abrir. Cubro o rosto com o travesseiro.

— Bom dia menina Kiara — ela cumprimenta alegremente. — Finalmente teremos tempo de conversar sem as interrupções do menino Lorenzo. — Puxo a coberta até o pescoço e a encaro inquisitiva. Os olhos claros, a pele escura, o mesmo tom nem tão preto nem tão castanho do cabelo e o mesmo nariz.

— Não sei como nunca percebi... — eu resmungo, enrugando o nariz. Ela vira-se completamente para mim e arqueia as sobrancelhas, exatamente como ele faz.

— O quê?

— Que você é avó dele. — Ginevra arregala os olhos. — Pois é, ele me contou. Disse que foi atrás de você nos Estados Unidos, e a convenceu a vir. Por que não quer que os outros saibam? — Me sento na cama e pego o copo de vitamina ao meu lado. Ela passa as mãos no avental do uniforme e se senta na ponta da cama.

— Era um risco enorme na época, já que o Vincenzo ainda estava vivo. Sei que nossa semelhança, se reparar bem, é muito grande, mas Vincenzo nunca se deu o trabalho de vir até aqui ou de reparar em quem os filhos contratavam como empregada. Foi a maneira que encontramos de não me colocar em risco. — Ela coloca uma mão em cima da minha canela por cima da coberta e prende os lábios entre os dentes. — Olha menina, o que vou lhe contar agora foi a única coisa que me deu coragem de vir até aqui. A culpa que carrego comigo há anos.

— O quê? — Coloco o copo em cima da bandeja novamente e trago-a até o meu colo.

— Quando descobri que a minha filha estava grávida tão jovem, e soube de quem era o filho, eu queria obrigá-la a abortar. Ela ficou com raiva de mim e fugiu de casa, seguindo com a gravidez enquanto morava na casa de uma amiga em outra cidade. Assim que ela entrou em trabalho de parto, a amiga ligou para mim sem que ela soubesse, mas não consegui chegar a tempo. — Uma lágrima solitária desceu por sua bochecha. — Eu não estava lá no momento mais importante da vida da minha filha e quando cheguei ao hospital o que encontrei me deixou perplexa; minha filha estava histérica porque o bebê tinha sido levado.

— O Vincenzo disse que ela havia morrido no parto... — Sinto meu estômago revirar em agonia quando mordo a torrada.

— Não morreu, querida. Eu que morri para ela, pois a sua raiva de mim ficou ainda maior. Ela continuou morando com a amiga e o fato do filho ter sido levado para crescer na máfia a deixou louca, então ela usou todos os meios que conseguiu para tentar achá-lo, até isso irritar o Vincenzo. — Ela respira fundo, como se a lembrança doesse. Eu sinto como se eu fosse vomitar a qualquer momento. — Ele foi até os Estados Unidos pessoalmente e matou ela e a amiga. Ele não sabia o meu paradeiro e não se deu o trabalho de procurar, achou que eu não me importava com minha filha. Foi a besteira que pedi para ela fazer que a afastou de mim e salvou a minha vida quando eu não merecia ser salva.

— Ginevra, eu sinto muito. Não foi sua culpa o que aconteceu. Foi o Vincenzo, ele causou isso. — Prendo os lábios entre os dentes e coloco a bandeja de lado de novo. — O Lorenzo, ele sabe? — Pergunto com cautela. Ela balança a cabeça positivamente.

— Sim, sim, contei para ele quando ele me achou para tentar convencê-lo de que não valia a pena me trazer para cá, mas ele não desistiu de mim. Lorenzo se tornou um garoto tão grande e forte, não se perdeu nos ensinamentos do pai, continuou com a essência que a mãe dele tinha e ele é... a única família que me sobrou, a parte dela que me restou. Foi a única coisa boa que sobrou disso tudo. — Ela se levanta, dando um sorriso triste e limpando as lágrimas. — Chega de conversas tristes, coma, menina Kiara. Tenho certeza que antes de viajar ele tirou muito das suas energias. — Graceja ela, fazendo minhas bochechas queimarem.

Paixão MortalOnde histórias criam vida. Descubra agora