10. Feridas antigas

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"A melhor maneira de descobrir se você pode confiar em alguém é confiando."

Ernest Hemingway

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Harvey não dormiu na mesma cama que eu no dia seguinte. E nem no outro e muito menos no próximo. Preferia a companhia do sofá a minha. Além disso, trocou apenas uma palavra ou outra comigo naqueles dias, somente para tratar sobre assuntos realmente importantes para ele como, por exemplo, algo sobre as crianças, as contas para pagar, os alimentos que deveríamos comprar e Sirene.

Os sorrisos tão frequentes para mim na última semana, agora não existiam. Eles eram direcionados para Lily, Jamie, o carteiro que vinha todas as terças, a senhora gentil dos panos de prato e até mesmo Sirene, mas nada, absolutamente nada, para mim.

Eu deveria estar comemorando, é claro.

Pulando no sofá, cantando no chuveiro e desfrutando de cada cantinho daquela maravilhosa cama que ficou só para o meu conforto, pois eu finalmente havia conseguido afastar Harvey. No entanto, não foi isso que aconteceu, muito pelo contrário.

Sentia-me extremamente sufocado, mesmo com a presença concreta da solidão.

Sufocado por palavras que não saíam e por angústias que me atormentavam. Era ruim, muito ruim, mas eu era covarde demais para sequer fazer alguma coisa e reverter a situação.

E eram nesses momentos em que a vontade de voltar para a minha realidade se fazia imensamente presente.

Mas ali estava eu... Sentado à mesa com Harvey, Lily e Jamie e mergulhado em um silêncio constrangedor, mastigando a comida diversas vezes e engolindo em seco, sentindo-a arranhar em minha garganta.

Eu podia ver nos olhos atentos, preocupados e curiosos de Lily que ela percebeu que havia algo de errado entre eu e Harvey. Não tinha como não perceber, para falar a verdade. Pelo pouco que pude ver, Harvey é uma pessoa extremamente falante à mesa, sempre comentando sobre tudo, provocando a todos e rindo de qualquer acontecimento. Mas não era isso que estava acontecendo, pois ali estava Harvey fitando o próprio prato, sem olhar uma vez sequer para frente, esquecendo-se de alimentar Jamie e fazendo com que eu tivesse de assumir essa responsabilidade.

— Vamos à casa de sua mãe amanhã — Harvey falou baixo, rouco e ainda olhando para o próprio prato. — É aniversário das gêmeas.

Parei o garfo cheio de comida no meio do caminho e encarei meu suposto marido de boca aberta.

Ir à casa da minha mãe amanhã?

De minha mãe com quem eu não converso faz vários e vários anos devido ao fato de que meus pais me desprezaram ao descobrirem minha orientação sexual?

Harvey só poderia ser maluco!

Por alguns segundos, fiquei esperando que ele levantasse o olhar e desse uma risada, dizendo em seguida que era apenas uma brincadeira um pouco sem graça, porém não foi isso que aconteceu. Harvey permaneceu com seus olhos no prato e enfiou mais uma colherada na boca, parecendo extremamente sério quanto ao fato de que iríamos no dia seguinte na casa de minha mãe. Na casa de pessoas que simplesmente me desprezaram por conta de eu ser quem sou.

Ele não pode estar falando sério.

— Nós vamos ver a vovó Jo? Estou com saudades da vovó Jo...

— Isso é sério? — perguntei com uma de minhas sobrancelhas levantadas.

Harvey pareceu engolir com dificuldade a comida que tinha na boca, talvez por não esperar que eu me dirigisse a ele enquanto estivéssemos brigados e por não saber o que fazer sobre isso. Depois disso, levantou o rosto e me encarou sério, como sempre nesses últimos dias.

Destino EstranhoOnde histórias criam vida. Descubra agora