41. Poça d'água

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"Eu me importo. Eu sempre me importo. Esse é o meu problema."

Ajit Jain

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Quando acordei no dia seguinte, após comer o prato preparado por, nada mais, nada menos, que eu mesmo — e que tinha ficado excepcionalmente delicioso — e dormir ao lado de Harvey naquela maldita cama que rangia a noite toda com o menor dos movimentos, acabei acordando pronto para provar o bolo feito por ele em comemoração ao meu aniversário. No entanto, como Harvey sempre transformava tudo em um espetáculo, ele não deixou e tirou o bolo delicioso de perto de mim.

— Por que não? — questionei de braços cruzados e com a paciência tendendo a zero.

— Porque tem que deixar na geladeira por algumas horas — falou como se fosse óbvio, porém minha cara de confusão refletia o quanto aquilo parecia papo furado para mim.

Não deixei por aquilo, é claro, e tratei logo de deixar que minhas expressões fossem tomadas por uma de sofrimento.

— Você vai me deixar ir trabalhar com fome? — perguntei lamentando.

Harvey, aquele ridículo, apenas revirou os olhos.

— Você vai trabalhar? No domingo? — indagou confuso.

— Quero ver as crianças — falei em excitação.

— Mas você as verá amanhã, não?

— Sim, mas... Eu preciso vê-las, ok? Além disso, alguém precisa colocar papel higiênico nos banheiros, dar uma passada de vassoura nos corredores. Quer que as crianças fiquem no meio da imundice? — Harvey deu risada e acariciou o pelo de Sirene que estava deitada em seu colo enquanto ele assistia algum programa qualquer na TV. Aquela vendida já estava me traindo, afinal de contas. — Por falar em papel higiênico, precisamos fazer compras. Está quase acabando tudo por aqui e daqui a dois dias será Ano Novo. Não podemos começar de um ano para o outro sem nada nessa casa.

— Vamos amanhã então, depois de nossos expedientes, pode ser?

— Ok. — Vesti um de meus casacos pretos preso no cabide perto da saída e abri a porta pronto para ir trabalhar. — Mas saiba que as pessoas estarão brigando por um pedaço de papel amanhã de tão cheio que o mercado estará.

Harvey deu risada, voltando a atenção para a TV. Voltei até a sala e resolvi pegar a chave da minha caminhonete, observando em seguida o fato de Harvey ter começado a fazer massagem na barriga de Sirene com os pés. Encarei-a com raiva, acusando-a com o olhar de ser uma tremenda de uma traidora, porém ela apenas deixou a língua cair para fora da boca e balançou o rabo contente. Mesmo que o orfanato fosse perto, eu resolvi que iria começar a andar com Doroteia até lá, já que Harvey era uma pessoa muito caseira e saímos cada vez menos de casa.

É claro que eu esperava que isso mudasse quando resolvêssemos adotar as crianças. No entanto, até lá, eu teria que me contentar com as ocasiões raras em que passeávamos por Londres. Não que eu estivesse reclamando do fato de ficar aninhado nos braços de Harvey em uma tarde fria de fim de semana, mas eu também amava sair e desejava fazer isso de vez em quando.

Talvez eu acabasse sugerindo isso a meu marido algum dia desses.

— A gente podia sair algum dia desses, né? — sugeri sem pensar duas vezes.

Talvez eu fosse um pouco ansioso em relação às coisas.

— Sair? — Ganhei a atenção de Harvey e ele pareceu pensar. — Onde?

— Eu não sei. Talvez dar uma volta por aí? — falei mais como uma pergunta. — Nós não temos muita grana então talvez tivéssemos que escolher algum programa que não pagasse nada. O que acha de andar em algum parque com Sirene? Ela iria gostar.

Destino EstranhoOnde histórias criam vida. Descubra agora