Fiquei paralisada, encarando Daniella. O ar entre nós estava carregado de emoções não ditas, e o silêncio parecia se arrastar. Ela estava ali, a mulher que me desprezou, que me ignorou quando eu mais precisei.
— Podemos conversar? — repetiu ela, a voz tremendo um pouco.
Helena, sentindo o peso no ambiente e entendendo que precisávamos de espaço, avisou que iria nos deixar a sós e saiu.
Eu cruzei os braços, um gesto automático de defesa. A frieza que eu tentava manter se misturava com um turbilhão de sentimentos. Minha mente gritava que eu não queria aquilo, que era inútil, mas algo em seu olhar me deteve.
— Sobre o quê? — respondi, a raiva e a dor se infiltrando em cada palavra.
Daniella hesitou, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado. Seus olhos azuis estavam marejados, mas havia uma dureza ali que não passava despercebida.
— Sobre tudo — ela finalmente disse. — Sobre o que aconteceu... sobre nós.
— Nós? — ri, um riso sem humor. — Você fala como se tivéssemos alguma relação.
Ela deu um passo à frente, como se quisesse se aproximar, mas hesitou, percebendo meu desdém.
— Eu sei que não tenho direito de pedir desculpas, mas... eu quero que você saiba que sinto muito.
— Sinto muito? Isso é tudo que você tem a dizer? — minha voz aumentou, a raiva escapando de controle. — Você me deixou à beira da morte e tinha a chance de me ajudar!
Ela fechou os olhos por um momento, como se estivesse absorvendo a dor nas minhas palavras. Quando os abriu, havia uma mistura de dor e vergonha.
— Eu estava confusa... — ela começou, hesitante.
— Confusa? — interrompi, dando um passo à frente. — Não se atreva a usar isso como desculpa! Você sabia muito bem o que estava fazendo. Não foi medo ou confusão. Você fez isso porque quis! Você quis me ver morrer, quis se vingar de algo que nem existe!
Daniella recuou um pouco, visivelmente abalada pela intensidade da minha acusação. Eu senti o gosto amargo da verdade que estava prestes a sair.
— Você achava que Gustavo te deixou por minha causa, não é? — cuspi as palavras, cada uma delas carregada de raiva. — Você achou que ele tinha um caso comigo, que foi por isso que ele foi embora. Então, você me puniu por algo que nunca aconteceu!
Ela baixou a cabeça, as lágrimas escorrendo pelo rosto dela, mas eu não sentia pena. Não desta vez.
— Eu estava com raiva — ela admitiu, a voz falhando. — Eu pensei... pensei que você tinha roubado ele de mim, que você era a razão...
— A razão? — interrompi, descrente. — E isso te deu o direito de me deixar morrer? Eu precisei de sangue e você se recusou! Você, uma médica, que jurou salvar vidas! Como você pode se olhar no espelho e acreditar que é uma pessoa boa?
— Eu... — ela começou a balbuciar, mas eu não estava disposta a ouvir.
— Seu juramento, Daniella, é uma piada — continuei, com uma frieza que me espantou. — Você teve a chance de provar que era uma pessoa melhor, de mostrar que, apesar de toda a sua amargura, ainda tinha algo de humano em você. Mas o que você fez? Você escolheu ser mesquinha, pequena. Escolheu ser cruel.
Ela soluçou, o choro vindo em ondas agora, mas eu estava firme. A raiva que me consumia estava saindo.
— Quantas vezes você me desprezou? Quantas vezes você me olhou como se eu fosse a pior coisa que já cruzou a sua vida? — minha voz estava mais baixa, mas o peso das palavras era maior. — Eu nunca te fiz nada, Daniella. Nunca. E mesmo assim, você se recusou a me ajudar quando eu mais precisei. Isso... isso é imperdoável.
Ela ergueu a cabeça, e os olhos inchados de tanto chorar encontraram os meus com uma súplica que não me comoveu.
— Analiz, eu... não sabia o que fazer. Eu estava tão cega pela raiva, tão magoada com Gustavo... E quando eu soube que você precisava de sangue... — ela engoliu em seco, tremendo. — Eu me senti... poderosa, pela primeira vez em tanto tempo. Como se fosse uma forma de me vingar por tudo que eu tinha perdido.
— Vingar-se de mim? — soltei, incrédula. — Eu era a vítima, Daniella! O que você perdeu nunca foi culpa minha. Era entre você e Gustavo. Você deveria ter sido a pessoa adulta, mas o que você fez foi monstruoso.
Ela baixou os olhos, mordendo o lábio como se aquilo pudesse impedir mais lágrimas de caírem.
— Eu sei... — murmurou. — Eu sei que errei. Mas, naquela hora, toda a raiva e o ressentimento me cegaram. Eu só pensava em mim, em como eu me sentia traída. Não conseguia enxergar nada além disso.
— Você não podia ver porque estava consumida pelo seu egoísmo — repliquei, mais controlada agora, mas ainda furiosa. — Ser médica é salvar vidas, colocar as pessoas acima de suas questões pessoais. Mas você escolheu ignorar isso. E, por quê? Porque você queria se sentir vingada de algo que nunca aconteceu!
Ela me olhou com desespero, suas mãos trêmulas tentando encontrar alguma redenção nas palavras que saíam de sua boca.
— Eu sei que fui egoísta. Eu sei que nada do que eu disser vai mudar o que fiz, mas eu... eu me arrependo de cada momento daquela escolha. Eu me arrependo de ter deixado minha raiva me cegar. E, agora, vendo você aqui, viva, me enfrentando... eu percebo o quanto fui pequena.
— Pequena? — repeti, exasperada. — Você foi além disso. Pequena não descreve o tipo de crueldade que você mostrou. A mulher que prometeu salvar vidas, a que supostamente tem empatia por seus pacientes, não hesitou em me deixar morrer. Porque, no fundo, você me odiava.
Ela balançou a cabeça, chorando mais forte agora.
— Eu nunca quis odiar você... nunca! Eu só estava tão perdida, tão amargurada. Quando Gustavo foi embora, eu procurei alguém para culpar, e você me encontrou. Eu sei que isso não justifica nada, mas eu não conseguia pensar direito.
Eu a encarei, sem ceder um centímetro.
— Você nunca pensou em mim, Daniella. Nunca. Desde o começo, eu era apenas um incômodo para você. Você sempre me olhou com desdém, como se eu fosse a culpada pela sua infelicidade. E quando você teve a chance de provar que era melhor do que isso, você se mostrou podre por dentro.
O silêncio que caiu entre nós era pesado. Daniella não tinha mais palavras. Ela ficou ali, em pé, tremendo, sem saber como consertar o que tinha destruído. A dor em seus olhos era real, mas não apagava o que ela tinha feito. Não apagava o terror que eu senti ao saber que a única pessoa que poderia me salvar escolheu não fazer nada.
— Eu não posso te perdoar — disse finalmente, minha voz baixa, mas firme. — Não agora. Talvez nunca.
Ela assentiu, o olhar derrotado. Sabia que merecia isso.
— Eu entendo — sussurrou. — E mesmo que você nunca consiga me perdoar, eu estarei aqui. Sempre estarei, se você mudar de ideia.
— Não espere por isso — respondi, me afastando. — Porque eu não sei se vou conseguir.
Daniella olhou para mim mais uma vez, uma última tentativa de captar algo que pudesse lhe dar esperança. Mas ao ver que eu não recuaria, ela se virou, caminhando em direção à saída.
E eu fiquei ali, imersa nos meus próprios pensamentos, sem saber se algum dia conseguiria perdoar aquela ferida que ela abriu.
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A Babá 3 - Novos Caminhos
RomanceVinte e um anos se passaram desde o desaparecimento de Aurora, a filha de Daniella e Gustavo. Desde então, a vida do casal nunca mais foi a mesma. As marcas da perda ainda pesam sobre eles, e o amor que um dia os uniu enfrenta seus maiores desafios...