A cena não sai da minha memória. E vai ser difícil esquecê-la.
*
— Bom dia!
A sala era bem ajeitada. Bonita, mesmo. Lindos arranjos de flores enfeitavam a beira da vidraça. As paredes claras deixavam o local maior. E eu, totalmente o oposto. Em cor e tamanho.
— Ah, você. Bom dia — disse a moça atrás da mesa. Após um relance, seus olhos voltaram à tela com computador e de lá não saíram mais — Em que posso lhe ajudar?
— Então, eu vim pela vaga de emprego. Do jornal. De auxiliar de... gerente.
— Ah, é? E quais as suas qualificações?
Estava bastante nervosa, mas penso que do lado de fora parecia estar animada. Não parava de me mover, ainda que fosse só mexer o dedão da mão, não conseguia ficar parada.
Do outro lado da mesa, a moça que nem me dissera seu nome não olhava para mim nem ao perguntar e nem ao ouvir minhas respostas. Nem reparara se ela tinha olhos claros, para combinar com a pele e os cabelos. Até é uma combinação bonita, mas sem ver seus olhos não havia como ter certeza.
— Hein?! Tem alguma?
— Ah! — Meu primeiro vacilo: demorei para responder, pensando em bobeira. — Eu tenho diploma de administração, de contabilidade, sou bastante versátil, aprendo rápido...
Num momento toquei a cadeira que ficava deste lado da mesa, pensando que a moça me convidaria a tomar assento.
O que não aconteceu.
— Versátil?
— Isso. E adoro aprender coisas novas. Tudo que a gente aprende enriquece a vida, sabia?
Uma filosofada de leve, só para disfarçar o nervosismo. Enquanto isso, a moça terminou o que estava fazendo em seu computador e finalmente olhou para mim. Ela posicionou suas mãos com dedos abertos tocando as pontas, como geralmente faz uma pessoa sábia.
— Olha, Juliana...
— Ariana.
— Que seja... Ariana, infelizmente você não preenche os requisitos para a vaga descrita no jornal. A vaga é de gerente, se você leu.
Fingi que não senti uma pontada no sentimento.
— Li sim, senhora. E eu tenho capacidade para ser uma gerente, sim.
— Para gerenciar, você deve conviver um tempo conosco. Conhecer a empresa, o pessoal, os recursos, de tudo um pouco.
— A senhora não leu meu currículo? Já trabalhei em outra empresa deste mesmo ramo, dona...
Ela não disse seu nome de jeito nenhum. Parecia até que não gostava de mim. Pior, que tinha algo contra mim.
— Ariana, essa vaga não é pra você. Não temos nenhuma vaga pra você. Quem sabe numa próxima? Agradeço sua...
A moça se sentou e colocou a mão no mouse, como se eu já estivesse saindo da sala.
— Senhora, eu garanto que não vai se arrepender se me der a vaga!
— Desculpe, mas você não tem o nosso perfil.
Se há um sentimento que se manifesta em mim é a revolta. Não aceito nenhuma injustiça. Nem com os outros, nem comigo. Eu tinha visto alguns dos candidatos à vaga, ali do outro lado da porta que, trancada, nos separava da sala de espera. A maioria eu conheci na escola, lá da minha cidade, alunos irresponsáveis, sem interesse. Aposto que procuram qualquer empreguinho, sem pensarem a longo prazo, numa carreira.
— Senhora, pode provar! Faça um teste comigo.
De repente a moça pareceu tomar o mesmo sentimento. Se levantou num salto, com as mãos firmes sobre a mesa, e olhou em meus olhos. E botou para fora tudo que pensava.
— Ariana, a Reemid é uma empresa fina, não é um zoológico. Não pagamos nossos funcionários com bananas, tá entendendo? Não tem, por acaso você viu alguma piolhenta na Reemid? Na entrada, na cozinha, nem mesmo na faxina.
Levei frações de segundo para captar a mensagem. O que a boca não disse, seus olhos gritaram. Suas pupilas se retraíram quando ela voltou a mexer no computador.
Dei as costas em silêncio e tomei o caminho que me restou. Saí da sala revoltada com o preconceito que ainda existe em pleno Século 21. Cheguei a tocar a maçaneta.
— Ariana, veja bem, na verdade você tem o perfil ideal para uma vaga nova que encontrei aqui. — Um sorriso se abriu, mas não era de alegria. — Pode passar no RH e assinar os papéis. Estamos precisando de uma faxineira com urgência.
*
Faxineira? É sério? Aquela moça me viu como uma serviçal... por causa da minha cor? Inacreditável.
Por outro lado, essa pode ser minha chance. Quantos não começaram do nada e hoje estão no topo? Posso aprender muito trabalhando na Reemid, ainda que fosse... nisso.
E ainda há outro fator: a necessidade. Desde que nos mudamos para minha nova casa, minha mãe e eu temos passado por privações. Já faz uns meses que estamos ali, e estamos dependendo apenas da aposentadoria dela que, convenhamos, é uma porcaria.
O salário de faxineira é pouco também. Mas dois poucos são melhores do que um.
Sim, posso aceitar essa vaga.
Tá, vai, por ali.
Tenho um emprego, mas não vou ficar nele por muito tempo.
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Quantas voltas
Художественная прозаO preconceito começa dentro de casa, quando nem a mãe acredita que Ariana possa ser grande. Após se mudar para uma cidade maior em busca de novas oportunidades, conhece a fé no mesmo grupo de Arnaldo, o jovem mais bonito de sua igreja, mas também o...