37 - Heloísa

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Acordo de um pesadelo terrível, no qual vultos negros surgiam do chão, me agarravam e tentavam me arrastar pelo piso.

— Helô, tá acordada?

Minha mãe bate à porta do quarto. Tudo está limpo, embora não me lembre de ter arrumado qualquer coisa desde aquele dia... Que vacilo meu! Agora minha mãe sabe que eu me cortava, e, sabe, gente velha gosta de uma fofoca com os vizinhos...

— Tô. O que é, mãe?

Pela porta entreaberta, ela põe apenas metade do rosto para me ver. Vejo seu sorriso, algo tão simples mas que me dá uma sensação estranha. Não que nunca a tenha visto sorrindo, mas esse está diferente. Mais sorridente.

— Helô, suas amigas estão aí, querem te ver.

Amigas? E tenho amigas? Seriam aquelas traidoras da época da escola? Ou aquelas nojentas que chupam sangue? Ou aqueles insensíveis que só vão atrás dos que saíram da igreja deles?

— Fala que eu morri, mãe.

Viro-me para a janela, não sem antes ver o olhar de surpresa da mãe. Ela nem fecha a porta, por onde posso ouvi-la se despedindo de alguém.

*

Quando minha mãe me chama para jantar, penso que ela está doida. Jantar de tarde? Mas então vejo o céu escuro pela janela do quarto. Nem percebo que dormi a tarde toda.

O sorriso doce dela faz eu me sentir mal. Minhas amigas podem até ser um bando de falsas, mas minha mãe, mesmo eu a tendo desprezado por tanto tempo, tentou estar sempre comigo. Às vezes brava, mas na maior parte do pouco tempo que lhe dei, ela me deu palavras positivas. Por consideração a ela que me levanto e vou até a cozinha vou jantar.

Fico parada diante de um prato de arroz com quatro ou cinco grãos de feijão. Que refeição mais bosta! Minha mãe ficou com preguiça de preparar a mistura hoje? Ela se senta e começa a olhar para mim, gerando um certo desconforto.

— Helô, me desculpa, tá?

Já não estou comendo com vontade mesmo. Estaciono a colher e correspondo seus olhos.

— De verdade. Já disse tanta coisa pra você, reclamei tanto, mas... nunca... já disse o quanto você é linda?

A fome, que já estava de costas para esse prato, vai embora por completo. Meu coração bate um pouco mais rápido.

— Helô, você é tão linda, sempre foi. Tudo que você fazia sem eu deixar, como essas tatuagens, essas marcas nos braços, aqueles cabelos coloridos, você nunca precisou disso pra realçar sua lindeza. Você é tão inteligente, esperta, sabida. Sei que quando você tira notas baixas é porque tá passando por algum problema. Algum menino que você gosta que te ignora, ou alguém te enchendo a paciência, eu sei.

Meu rosto parece formigar. Meus olhos querem lacrimejar. Lembro de cada situação que minha mãe está falando. Nunca pensei que ela entendesse o que eu passava.

— Helô, eu entendo que você queira ficar só, mas se tem algo que eu entendo mais é o quanto você é especial. Você que me levou a saber que eu posso ser uma mãe melhor, e é isso que quero ser, com sua ajuda. Aprendi a confiar em você, sei que você é esperta e pode fazer suas escolhas.

Não consigo segurar algumas lágrimas. E nem ela.

— Eu te amo tanto, Helô. Você não imagina. Só quero te ver feliz. Não se sinta forçada a nada, mas se posso te dar uma opinião, você poderia voltar a ir na igreja, fazer amigos que te ajudem positivamente...

— Mãe... — interrompo e mantenho o silêncio por alguns instantes. Ela vem para o meu lado e me abraça. — Mãe... eu também te amo.

*

De madrugada vou dormir com pensamentos diferentes. Com vontade de viver e rever aquelas pessoas que me ajudaram, ainda que um pouco, enquanto estive perto delas.

Uma certeza é a de que não estou preparada para ver Arnaldo ainda, mas preciso voltar para um amigo que sei que nunca me abandonou. Amanhã mesmo.

Quantas voltasOnde histórias criam vida. Descubra agora