Faz tanto tempo que não converso pessoalmente com o Valdir que nem sei como vai ser quando ele chegar aqui no ônibus. Evento marcado em cima da hora já dá um aperto, e agora meu patrão e amigo vindo... Fica difícil esconder o nervosismo. Apoio-me na porta do ônibus, mas a mão escorrega e quase levo um tombo na frente dele! Que vergonha!
— Aôo, obreira! Tá caindo de bêbada, é?
Aqueles jovens novos não perdem uma chance de tirar um sarro. Será que não aprenderam a ter temor na igreja deles? Ah, ele chegou. Deixa eu arrumar minha postura.
— Olá, tudo bem, obreira?
— Tudo, e o senhor?
— Para com essa de senhor. Me chama de Valdir mesmo.
— E eu de Ariana, uai!
Só escuto as risadinhas dos jovens de Marazul. Entramos no ônibus.
— E aí, Ary, já são seis meses na obra! Como tá sendo a guerra?
Apesar de estar com vontade de sentar com ele, fico em pé no corredor, deixando a poltrona do lado dele vazia. Eu estou encarregada de cuidar do ônibus, então nem devo sentar mesmo. Nem sei o que respondi para o Valdir; estou com a cabeça cheia, muita responsabilidade, e não posso desapontar ninguém para não dar mais motivo para falarem de mim. Já basta o que falam da minha aparência.
Momentos depois olho para ele, cujo semblante parece ter caído um pouquinho enquanto admira os prédios pela janela do ônibus. Com os nomes de todos os passageiros no celular, permito que ele sorria um pouco quando me assento na poltrona vazia do lado dele. Só um segundinho não faz mal! E faz de conta que eu não sei qual é a dele, até porque ainda não estou para isso.
— É, Ariana, você se esforçou muito nas suas férias. Falo a respeito do trabalho, lá. Nem descansou direito, que eu sei.
É verdade, mas não quero falar de trabalho hoje. O único trabalho meu de sábado é o trabalho de Deus.
— A cada dia que passa só agradeço a Deus por você. A V-Black jamais chegaria onde chegou se não fosse sua habilidade.
Sabe, eu acho que isso foi um elogio. Homens elogiam de um jeito tão estranho. Olho para ele mas logo me volto para a tela do celular, olhando para a lista de nomes. Pela vigésima vez. Algo no caminho me faz levar a mente, sem perceber, até minha casa. Minha mãe, sozinha, e eu aqui com meus colegas. Ela ficaria contente se me visse ao lado do Valdir. Pena que isso não signifique nada de mais. Mas estou chegando lá. Pelo rumo da conversa, Valdir realmente aprecia meu serviço. Bem que poderia aumentar meu salário!
*
Devido às responsabilidades, não participei do SDN como no ano passado. É um pouco frustrante, pois a vontade de pular, cantar e aproveitar o agito com a galera é grande. Mas o mais importante é o ganho das almas. Por isso volto feliz para o ônibus. Todos estão no lugar, mas Valdir está do lado de um rapaz de tornozeleira. É o rapaz com quem a Heloísa fica conversando! Arnaldo. Como é possível que ele tenha saído tão rápido da prisão? Ah, que seja... Ainda bem que ela não veio. Pelo jeito o trabalho urgente que ela tinha para fazer hoje para a escola foi uma bênção, um livramento de Deus!
Fico em pé durante o caminho todo. Vamos para casa. E Valdir não troca uma palavra comigo. O que aconteceu? Será que ficou sentido porque não lhe dei atenção? Pensei que hoje ele falaria algo importante. Estava com esperança de ver uma atitude da parte dele, e pensei que seria hoje. Bom, assim tenho mais tempo para me estabilizar.
*
Pouco antes de eu dormir, chega uma mensagem.
Valdir (23h21): Boa noite Ary
Valdir (23h21): Desculpa incomodar essa hr, mas é q esqueci uma coisa muuuito importante!!!
Valdir (23h21): Amanhã vamos almoçar lá na trooper, pra eu poder explicar umas ideias que ainda não deu, sempre esqueço ! Kkkk
Penso que essas ideias são pretextos!
Você (23h28): Ok
Você (23h31): Boa noite
Também, já é tarde para trocar mensagem com um rapaz, ou qualquer pessoa. Mas demoro um pouco mais para dormir, pensando no que ele vai dizer amanhã. Antes, claro, meia-noite busco o Espírito Santo, ele não vai me deixar tomar uma decisão errada.
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Quantas voltas
Narrativa generaleO preconceito começa dentro de casa, quando nem a mãe acredita que Ariana possa ser grande. Após se mudar para uma cidade maior em busca de novas oportunidades, conhece a fé no mesmo grupo de Arnaldo, o jovem mais bonito de sua igreja, mas também o...