6 - Heloísa

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Que ótimo! Hoje posso ficar de boa. Basta ficar na minha, na última carteira da sala de aula, e ninguém vai mexer comigo. É tudo que mais quero. Até pode acontecer de, por milagre, a aula ser interessante!

Não, nada interessante. Já é a segunda vez que a Neide ensina essas paradas de ohm, resistência, corrente, tensão... um monte de coisas que nunca vou usar na vida.

No intervalo sou daquelas que prefere ficar na sala do que sair e se socializar. Assim mesmo, saio, pois as zeladoras trancam as salas. Bem quando estou saindo, meu celular vibra. Tiro a franja da frente do olho direito ao ver quem está chamando enquanto rola o toque por alguns instantes:

A guitarra tocando em si menor. Now I will tell you what I've done for you: 15.000 tears I've cried, screaming, deceiving and bleeding for you, and you still won't hear me going under...

— Oi.

— Helô, talvez não estarei em casa quando você chegar, tá? O almoço tá na geladeira, você consegue esquentar, né?

— Sim, mas por quê?

— Nada demais. Só tropecei na mangueira e levei um tombo daqueles. Por sorte justo hoje seu pai passou aqui para...

— Não diz que ele é meu... pai.

— Ele está me levando no postinho. Acho que machuquei de verdade, não tô nem aguentando ficar de pé... Mas vai ficar tudo bem.

— Espero que não tenha sido nada.

— E não vai ser.

— Mãe...

— Fala, filha.

— Nada. Eu me viro. Cuidado — digo de forma ambígua, para que ela pense que falo do machucado, quando na verdade falo do meu pai.

— Se quiser almoçar na casa da tia...

— Não, não, tô bem.

— Pare com isso. Filha, preciso desligar, cheguei no postinho. Se cuida.

Suspiro. Em casa a comida já é pouca, ruim e ainda tenho que esquentar. Vai virar uma papa, como toda vez que preciso ir para a beira do fogão. Tive uma ideia melhor.

Na metade do intervalo vou à fila da cantina, que já não está tão grande. Até peço, mas as tias não enchem o prato com aquela serra que peço. Como bem rápido, antes que bata o sinal, para voltar à fila. A tia me reconhece e diz que não vai dar tempo de comer outra vez, e eu insisto que ela encha o prato.

Bate o sinal. A maioria dos alunos vai para suas respectivas salas. Eu sou a única que permanece na cantina. A tia não quer me dar mais comida. O que tem repetir? As refeições dessa cantina são muito boas, melhores que a da minha mãe. Só não posso deixá-la saber que penso assim! E seria ótimo levar um pouco para casa.

As tias se unem para me tirar da cantina, mas eu não deixo que fechem a porta. Jamais quis ser o centro das atenções. Não só as tias, mas vários alunos param tudo para olhar para mim. Será que sabem o que estou querendo? Sabem que estou querendo levar comida da escola para casa? Que mal há nisso? Por que simplesmente não deixam?

Vermelha, solto a porta, abaixo a cabeça e sigo arrastando o nariz no chão até o portão lateral do colégio, que fica quase sempre aberto. Aula? Esquece. Vou embora... esquentar a papa de almoço.

No caminho, aproveito para dar uma olhada no celular. Não tem muito papo no WhatsApp, nem notificações do Facebook. Mesmo assim abro a rede social, e passo o dedo na tela com o mesmo entusiasmo com que pretendo mexer com almoço.

Uma foto de cachorro, um vídeo do mais novo filme de terror, outro cachorro (e feio), uma frase de efeito (que não causa nenhum efeito em mim), um cara branco sorrindo com um pessoalzinho atrás... Mas eu conheço esse cara de algum lugar.

Sim, é aquele tal Arnaldo, que falou comigo no sábado. Ele é famosinho, olha, a foto tem vinte curtidas! Também, com esse rosto... Se alguma foto minha tivesse dez curtidas, eu já estaria no hall da fama da cidade.

Cola com a gente! Que frase mais velha, ninguém fala assim mais! Porém, apesar da frase tosca, esse post me dá uma sensação boa. Como se fosse pra mim. Como se o Arnaldo estivesse ali, na foto, me chamando. Aliás, como essa foto veio parar na minha linha do tempo, se não tenho ele como amigo?

Arnaldo, você parece tão feliz. Quem me dera ter um pouco dessa felicidade. Talvez assim eu comeria papa de boa!

De repente me dá uma vontade de parar de andar olhando para o celular, mas não por me aperceber do perigo existente desta prática. Estou passando pela Praça, onde procuro um local vazio para não chamar atenção de ninguém.

— Deus, se o senhor está aí, me ouvindo, me mostra alguma coisa, me dá um sinal.

Outra vez ouço Evanescence.

— Oi, mãe? Tudo bem?

— Oi, Helô. Tá sim, não aconteceu nada. Só passei uma pomadinha e fiquei boa!

— Que ótimo! Então você já tá indo pra casa, né?

— Tô sim. Não precisa se preocupar com o almoço... nem em ir na tia Edna!

Minha mãe sabe que eu ficaria com fome se dependesse da tia Edna. Mas não importa mais! Ela está bem! E eu preocupada, pensando que teria quebrado algum osso.

Seria esse um sinal?

— Valeu, Deus.

Quantas voltasOnde histórias criam vida. Descubra agora