Havia tempo que eu não saía para evangelizar. Não pude mais dizer não, pois daria a impressão de que estou mal. Não que eu ligue para o que pensam ou deixam de pensar de mim, mas querendo ou não as pessoas reparam em nós que estamos à frente na batalha. Tenho o dever de dar um bom testemunho, e por isso hoje resolvi ir com o Klever para a rua. Ele vai até a favelinha, onde quase nunca evangelizamos por questões de segurança. E eu o sigo.
Ando atento a cada milímetro do ângulo de visão, cobrindo toda a volta. A estrada de pedras torna a caminhada pesada, mas a favela não é muito grande. Só é estranha a sensação de estar sendo observado por todos os lados.
Meu amigo não esboça preocupação nenhuma. Anda como se estivesse na George Martin, até cumprimentando algumas pessoas que estão na rua, antes de lhes entregar o convite.
Klever está silencioso. Atento e pensativo. Eu também não sou muito de falar, por isso o caminho todo de vinda passou sem uma única palavra entre nós. Falamos primeiro com Deus, depois com três jovens que provavelmente comercializavam drogas. Em plena luz do dia! Somente um deles ficou ouvindo o convite do Klever, e eu apenas entrego panfletos para os outros dois.
— Vai, Arnaldo. Você que tá há mais tempo que eu nessa, me ensina aí como fala.
— Eu? Eu falo menos que você! Você tá indo bem, e é só deixar Deus te usar.
*
Falta pouco. Só mais três panfletos! Klever está realmente animado.
— Que que é?
Este jovem com uma arma grande que carrega pendurada (não entendo de armas) parece perigoso. Outro rapaz, atrás dele e também armado não para de nos encarar.
— Sou o Kleverson. Tudo beleza, rapaz?
O jovem bate os dedos na mesa ao lado. Perto dele uma moça loira, de traços orientais e muito nova, divide a impaciência por alguns instantes.
— Então, eu queria te fazer um convite... pra... pra você mudar de vida... Sabe, talvez você não esteja feliz com sua vida...
A moça eleva as sobrancelhas e abre um pouco mais os olhos. Olha para seu amigo impaciente e torna a fitar Klever.
— E o que é que tu sabe?
É um daqueles difíceis, que respondem o que a gente fala. Eu iria embora depois dessa.
— E não é verdade? — Klever insiste. Ouço o metal das armas balançando. — Não sei o que você faz da vida, mas quem garante que amanhã você vai estar fazendo ainda? E depois que você morrer, pra...
A moça se levanta e nos interrompe com um grito.
— Vaza daqui, moleque! Vaza, vai...
Puxo Klever pela roupa, mas ele se solta e deixa um folheto sobre a mesa, perto da mão do rapaz, antes de sair correndo. A jovem aponta uma arma para nós, mas não ouço disparo algum. Graças a Deus!
— Você é doido, Klever! — finalmente abro uma conversa entre nós, a caminho de volta para a igreja, num tom piadista.
— Sou mesmo — ele responde sem sorrir. — É uma alma.
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Quantas voltas
General FictionO preconceito começa dentro de casa, quando nem a mãe acredita que Ariana possa ser grande. Após se mudar para uma cidade maior em busca de novas oportunidades, conhece a fé no mesmo grupo de Arnaldo, o jovem mais bonito de sua igreja, mas também o...