LXIV - Verdade seja dita

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Eu estava quase no centro do pavilhão quando vi Gabriel sentado em uma mesa com os outros Arcanjos. Me aproximei da mesa tentando não derrubar nenhum dos meus irmãos dançando na multidão. Eu disse que tentei, não quer dizer que eu não tenha acidentalmente derrubado Elias em cima de uma jarra de vinho e que ele se sujou todo no processo.
Quando cheguei mais perto da mesa e toquei no ombro de Gabriel.

— Falou com ele?

— Sim. Ele disse que vai tentar falar com você depois da festa.

— Tentar?

— Segundo Deus, você sempre surta quando vocês conversam.

— Por que será, né?!

— Olhe Lucas, o fato é que se você quer ir para Terra, terá que convencê-lo e não se consegue isso gritando.

— Eu já tentei, Gabriel. Mas ele não me escuta.

— Só tente não gritar.

Assenti para Gabriel. Tentei me manter calmo embora estivesse ansioso. Se meu pai não concedesse meu pedido, eu teria que cair por conta própria e eu não estava nem um pouco afim de virar um demônio.
Olhei ao redor e me surpreendi em observar que eu não me sentia mais parte daquele lugar. Antes da missão, eu adorava as festas de comemoração – que geralmente duravam semanas.
Estava pronto para ir para um lugar mais calmo quando sinto uma mão no meu ombro.

— Vai aonde, caçula? – Disse Phanuel logo após dar um belo gole em uma taça de vinho.

— Para qualquer lugar que eu possa ficar sozinho.

Ele começou a rir. Gargalhar na verdade, me deixando sem entender qual o motivo da piada.

— Miguel, o garoto quer ficar sozinho.

— Sozinho não, quer ficar com a mortal. – Miguel me lançou um sorriso desafiador.

Eu queria muito arrancar a língua dele, adoraria fazer isso. Mas eu precisava ser um bom Arcanjo até ter minha audiência com meu pai. Respirei fundo e tentei fazer a raiva que crescia dentro de mim se esvair.

— E se eu quiser?

— Nada, irmãozinho. Só vou querer ver sua reação quando sua petulância acabar matando sua preciosa humana. – Ele sorriu em deboche.

— Assim como Liandra? – O sorriso dele sumiu. – Duvido muito.

— Liandra foi um erro. E isso a matou.

— Não, sua incompetência a matou. Sua obsessão por acatar ordens o impediu de salvá-la, você poderia ter impedido a morte dela, mas preferiu vê-la morrer.

— Você não estava lá, não sabe como aconteceu.

— Não, mas sei o suficiente para afirmar que nunca deixaria isso acontecer com Diana. Daria minha vida por ela se preciso, coisa que você foi incapaz de fazer por Liandra. Agora se me permite, quero ficar sozinho.

Sabia que tinha mexido na ferida mais profunda de Miguel.
Houve um tempo em que anjos e eram livres para sair em Terra quando queriam, mas então esses tais anjos começaram a não voltar mais e a incitar humanos a fazerem coisas das quais eles não queriam apenas para o próprio divertimento angelical. Isso começou a corromper os anjos um a um e assim os primeiros demônios surgiram. Miguel estava entre esse anjos e assim como eu, ele havia se apaixonado por uma mortal. Em uma briga de Miguel com um desses demônios, Liandra tinha se jogando – como diziam no Céu – na frente da lâmina que mataria Miguel. O problema era que a ordem para os anjos retornarem para o Céu já havia sido dada e ele como o bom Arcanjo que era, deu as costas para a sua amada e diferente de mim, a deixou para morrer.
Por isso Miguel era tão amargo com a vida. Ele fora obrigado a viver – praticamente – a eternidade com o peso da covardia em seus ombros.

Anjo MeuOnde histórias criam vida. Descubra agora