Quando pensei que estava tudo solucionado, Pedro levantou uma questão, estávamos ali sem nada, sem uma muda de roupa, sem escovas de dente, artigos de higiene, nada e, ainda por cima, a temperatura costumava cair nessa época do ano durante a noite. Rapidamente Digão surgiu com a solução e parte do grupo foi com o capataz de caminhonete até o hotel buscar mudas de roupas e o que mais precisássemos.
- Eu vou, sem problemas. – Falei quando estávamos decidindo qual de nós iríamos.
- Não, você fica e eu vou. – Gi falou decida. – É muito mais simples eu trazer as suas coisas que estão todas organizadinhas do que você achar as minhas que estão espalhadas pelo quarto.
Não tinha como argumentar com Gi, ela tinha total razão. Eu provavelmente perderia um tempão em busca das coisas dela e as minhas eu sabia exatamente onde estavam, tornando fácil para ela separa-las. Pedi a Gi que trouxesse a minha calça jeans, uma blusa branca e o short e a camiseta que eu usava pra dormir, além da nécessaire e meus chinelos.
Sentamos no quiosque e Pedro, com um violão colo, começou a tocar algumas músicas. A cantoria alegre logo chamou a atenção e quando vimos, misturados a nós já estavam Zé Otávio e Digão com seus violões e Victor com sua viola, acompanhando-nos.
- Menina Alana, vem aqui pertinho. – Digão me chamou assim que Pedro fez uma pausa e eu me sentei sobre os pés em frente a ele. – Canta Círio comigo.
Não foi um pedido e tão pouco uma ordem, mas certamente não havia espaço para negar. Eu afirmei num movimento de cabeça e Victor logo tratou de dedilhar a introdução.
- O tom tá bom pra você? – Digão quis saber.
- Tá ótimo. – Eu respondi sorrindo.
- Você começa. - Digão pediu.
Eu estava muito nervosa, minhas mãos tremiam e eu achei que não conseguiria. Mas foi só olhar para os três, com sorrisos amplos no rosto, que a voz saiu de forma calma e rouca.
A troca com Digão era tão perfeita que parecia que cantar ali, naquele lugar, com aquelas pessoas, era algo que eu fizera a vida inteira. Quando o último acorde soou, os gritos de vivas e aplausos em volta me trouxeram a realidade.
- Obrigada! – Me ergui e beijei Digão no rosto, meus olhos marejados.
- Não tem que agradecer. A mesma emoção que você tá sentindo, menina, esse velho caipira aqui também tá. - Ele olhou para os dois amigos sentados cada um de um lado e completou. – Olha a cara desses dois de bobo, menina, você encantou a todos nós, viu! – Ele ajeitou o violão no colo e me olhou. – Agora é a vez de cantar com Victor.
Cantar com o Victor? Como assim cantar com o Victor. Cantar com ele era uma coisa, mas com o Victor? Digão piscou pra mim marotamente, ele notou meu susto com o pedido. Eu provavelmente havia feito uma cara muito estranha e a minha falta de privacidade facial sempre me entregava.
- Bora de Caminho a Seguir. Soa essa viola aí Vitão. - Digão pediu e virando-se pra mim complementou. - Pensa na letra da música e aproveita o momento.
Eu agradeci com um sorriso, respirei fundo e olhei para Victor. Ele ajeitou o chapéu, sorriu e começou a tocar sem olhar pra viola, seus olhos focados nos meus.
Algo no olhar dele me transmitia força, segurança, como se cantar com ele ali, olhos nos olhos, fosse a única coisa certa a fazer. A voz dele penetrava além dos meus ouvidos, tomava meu corpo, me aquecia e quando chegou a minha vez de cantar, o sorriso torto que ele trazia me acalmou, como um abraço, me incentivando. A música terminou e não houve aplausos nem gritos, apenas o silêncio e a força daquele olhar contra o meu.
- Linda demais! – Ele falou baixinho só para os meus ouvidos me arrancando dos lábios um sorriso tímido.
Aos poucos o povo foi saindo do transe que a música trouxera e começaram a surgir aplausos suaves e comentários sussurrados.
- Victor! – Zé Otávio o chamou.
- Oi! – A resposta veio só com um leve mover de lábios e ele demorou alguns segundos antes de desgrudar os olhos dos meus.
A quebra daquela ligação me deu uma sensação enorme de perda, de queda, de solidão, meu peito se apertou e me senti tonta. Nem sei nem como tive forças para levantar, meu corpo todo tremia, meu sangue corria rápido pelas minhas veias e meu coração pulsava com tanta força que era possível escutá-lo à distância.
Caminhei até o Pedro e me sentei ao seu lado. Eu precisava de um apoio, de segurança, de algo ou alguém real, algo conhecido. Assim que me sentei Pedro me abraçou e um suspiro profundo escapou dos meus lábios. Me aconcheguei naquele abraço, procurando acalmar minha mente e meu corpo.
- Gata, o que foi isso? – Pedro sussurrou no meu ouvido.
- Eu não tenho a mínima ideia. – Respondi sincera.
- Eu to todo arrepiado até agora, você não tá entendendo. - Pedro segurou minha mão e a apertou.
Eu o olhei sorrindo e apoiei a cabeça em seu ombro. Não sabia o que dizer, não sabia o que sentir. Era tudo muito intenso, muito estranho e eu não sabia como lidar. A música recomeçou e, aos primeiros acordes de Menino da Porteira, uma canção super tradicional caipira, eu fechei os olhos e me deixar levar por ela, cantarolando baixinho, decida a aproveitar o momento tão maravilhoso que estava vivendo. Mas, quando o primeiro acorde da próxima musica soou na viola, eu não consegui me conter, abri os olhos devagar e olhei para Victor que também me olhava. Ele parecia esperar aquele contato para iniciar a canção, então um sorriso quase triste lhe tomou o rosto e, sem afastar o olhar, começou a cantar Cabecinha no Ombro, de Paulo Borges.
"Encosta a sua cabecinha no meu ombro e chora,
E conta logo suas mágoas todas para mim.
Quem chora no meu ombro eu juro que não vai embora,
Que não vai embora, que não vai embora.Quem chora no meu ombro eu juro que não vai embora,
Que não vai embora,
Porque gosta de mim..."Victor movimentou a cabeça como que confirmando o que havia cantado. O movimento foi tão sutil que poderia não ter acontecido, mas a piscadinha leve antes dele mudar o olhar de posição me deu a certeza de que ela realmente tinha acontecido. A canção seguiu, ele agora não olhava só pra mim, mas fazia questão de ficar mais um pouco quando seu olhar cruzava o meu.
"...Amor, eu quero os seus carinhos,
Por que, eu vivo tão sozinho.
Não sei se a saudade fica ou se ela vai embora,
Se ela vai embora,
Se ela vai embora...
Não sei se a saudade fica ou se ela vai embora,
Se ela vai embora,
Se ela vai embora...- Lan! É impressão minha ou o Victor está cantando pra você? – Pedro perguntou baixinho.
- Se é impressão sua, preciso assumir, é a minha também! – Eu respondi também baixinho.
- Amiga! – Foi tudo que Pedro disse antes de abrir a boca em forma de "O".
- Não me pergunta nada, eu não saberia o que responder. – Pedro concordou com um movimento de cabeça e voltei a me concentrar na música e no olhar de Victor.
Antes que a música acabasse ouvimos o barulho da caminhonete chegando, os três Violeiros pararam e Digão, com seu jeito bonachão, brincou com quem ainda permanecia ali.
- Cês podem ir se perfumar que já já o festê começa.
Eu e Pedro levantamos quase ao mesmo tempo e nos desequilibramos, Pedro tentou me segurar mas minhas pernas se enroscaram no troco que eu estava sentada e meu corpo inclinou pra trás. Eu só não cai porque Victor, que estava passando, me abraçou e me colocou de pé.
- Obrigada! – Eu me virei pra ele ao agradecer, suas mãos ainda em minha cintura.
- Tem de quê não! – As mãos deixaram a minha cintura e ele me olhou sério. – Tá segura agora?
- Sim, sim. Obrigada de novo! – Respondi sem jeito.
Victor tocou a aba do chapéu e abaixou o rosto até estar próximo o bastante para que só eu ouvisse o que iria dizer.
- Se for nos meu braços, pode cair quando quiser!
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Amanhecer em Canção
RomanceAlana é uma mulher independente e completamente dona do próprio nariz. Aos 38 anos, separada e com dois filhos já encaminhados, nada lhe escapa ao controle. Mantém sua vida sob total vigilância para que nada aconteça de forma diferente do que ela pl...