- Não Ernst, não tem a menor necessidade de eu ir. A parte burocrática já foi resolvida, agora é definir a parte artística e isso é com você, com a Gi e com o Pedro. - Eu já estava a quase meia hora discutindo com Ernst sobre ir ou não ir assistir ao show de Digão, Zé Otávio e Victor em São Paulo no final de semana que se aproximava.
Ernst queria que eu fosse de qualquer jeito. Se fosse qualquer outro show eu iria feliz, mas ainda não estava preparada pra reencontra Victor, nem sabia se estaria em um mês, que era quando eles gravariam o DVD e faríamos uma participação especial.
Ernst ainda falava e eu voltei a prestar atenção nele, só por educação, já que eu conhecia de cor aquele discurso.
-... e é por isso que preciso de você lá, que preciso das suas anotações preciosas, do seu bom senso e principalmente da sua competência. - Ernst sempre me enchia de elogios quando queria me convencer de algo que eu não queria fazer.
- Você precisa da Gi pra estudar o espaço e poder adaptar os movimentos do grupo, você precisa do Pedro pra entender como a luz do show funciona e modificar o que for necessário no figurino, você precisa de você mesmo para entender o andamento das canções e adaptar os arranjos, mas de mim, sinceramente, você não precisa.
- Eu sempre preciso de você, sempre! - Usou um tom dramático e suspirou alto pra reforçar a entonação.
- É sério Ernst, eu não vou, se eu realmente achasse que era necessário ir você sabe muito bem que nem precisaria me chamar. - Ouvi um resmungo do outro lado da linha e ele ficou em silêncio.
- Ernst, nem adianta fazer o magoado. - Falei já sem paciência.
- Ah! Tá bom! Desisto! - Ernst falou rindo.
- Amém. - Eu falei verdadeiramente agradecida. - Tem mais algum assunto que eu possa te ajudar? - Falei fazendo questão de usar um tom profissional.
- Não. Não tem. - A resposta foi quase um resmungo. - Me manda as passagens e reservas quando tiver tudo organizado. Ah! Não esqueça os traslados.
- Pode deixar, vai estar tudo no seu e-mail até às 18h. Beijinhos. – Me despedi na esperança de encerrar aquela ligação.
- Beijinhos, Bebê! - Ernst se despediu e finalmente desligou.
Peguei a agenda e me dirigi pra varanda da casa na Urca onde Pedro, Gi, Ernest e eu tínhamos montado uma pequena produtora no primeiro piso. Um pouquinho de ar fresco me faria bem depois daquela pressão toda.
Sentei em uma das espreguiçadeiras e abri a agenda pra verificar o que eu ainda precisava fazer naquela quinta feira e dela caiu um pequeno envelope com um post-it e um saquinho contendo pétalas cor-de-rosa já quase secas. Eu peguei com cuidado o envelope e o saquinho e não contive um suspiro. No post-it com a letra arredondada de Gi estava escrito.
"Achei que você gostaria de guardar"
Fiquei olhando o cartão e o saquinho com as pétalas da rosa que Victor deixara na recepção do hotel. A rosa cor de rosa me foi entregue pela recepcionista na segunda de manhã, na hora do check out, acompanhada de um cartão escrito a mão com os dizeres "Não há tristeza em partir quando estar foi só felicidade" e as iniciais V.A.
Na mesma hora eu quis saber quando ele havia entregado e a recepcionista me informara que ele deixara muito cedo, por volta das 6 da manhã. Eu li e reli aquele cartão inúmeras vezes durante o voo pro Rio de Janeiro tentando decifrar seu significado, depois, ao chegarmos em casa, conversei horas com a Gi, uma conversa bem dolorida inclusive, já que eu contei todos os detalhes que havia omitido na noite anterior por conta da presença de Pedro, pra só depois falarmos do cartão e chegarmos a uma maioria esmagadora de interpretações que não eram do tipo que pudessem me encher de esperança.
Olhei de novo o post-it e acabei sorrindo para aquele pequeno pedaço de papel. Gi tinha razão, eu gostaria de guardar, mesmo que na noite anterior eu tivesse jogado a rosa e o cartão no lixo num momento de raiva, eu realmente gostaria de guardar.
- Não faz isso, Lan. Guarda, a gente nem sabe ainda o que quer dizer a frase. – Gi estava sentada no balcão da cozinha fazendo cara de triste.
- A gente sabe sim o que significa! Claro que sabe! A gente sempre soube não é mesmo? – Eu caminhava de um lado pro outro na cozinha.
- Lan, fica calma, pega a rosa e o cartão do lixo, depois você vai se arrepender e é tarde demais. – Gi se mantinha calma diante do furacão que eu era naquele momento. Provavelmente estava um pouco assustada também, já que nunca me vira assim.
- Me arrepender? Nem fodendo!!!! – Falei com toda a convicção.
A verdade é que eu tinha me arrependido no segundo que eu joguei ambos no lixo, mas eu não daria o meu braço a torcer, não por causa da Gi, mas por minha causa, eu não conseguia tirar Victor da minha cabeça e me livrar da única lembrança que eu tinha dele era um bom começo, mesmo que eu soubesse que isso que me faria esquecê-lo.
Levantei da espreguiçadeira e subi correndo a escada que levava ao segundo piso da casa. Precisava falar com Gi. Nós morávamos no segundo andar.
Quando comprei aquela bela casa de três andares na Urca, a cerca de 15 anos atrás, ainda estava casada e meus filhos, Laura e Lucas, tinham 2 e 4 anos. A casa era perfeita para uma família, dois cachorros e mais os agregados de fim de semana. Mas aí eu me separei, os cachorros partiram, os filhos logo cedo tomaram seus rumos, Laura se formara aos quinze anos e aceitou um convite da Universidade de Barcelona indo estudar e Lucas, assim que completara dezoito, decidira que já era grande o bastante para cuidar da própria vida, arrumou um emprego e dividia um apartamento com mais dois amigos na Lapa. Então, de repente aquela casa era um imenso espaço sem vida.
Gi era quinze anos mais nova do que eu, viera pro Rio de Janeiro estudar cenografia, não tinha família aqui, morava numa República na Lapa e por ser bastante tímida tinha dificuldade de fazer amigos. Então quando nos conhecemos, cerca de um mês depois da chegada dela, ela ainda não criara um círculo de amigos e se sentia muito sozinha. Com duas semanas de convívio já sabíamos que seríamos amigas pela vida inteira, foi, como ela gostava, e ainda gosta, de falar – Um encontro cósmico. Eu, sem nem mesmo pensar duas vezes, ofereci um quarto pelo mesmo valor que ela pagava na república trazendo-a para morar comigo.
A chegada de Gi trouxe vida novamente a casa e quando decidimos criar a produtora, nada mais lógico que usar aquele espaço gigante. Assim, como num passe de mágica, a casa voltara a vida com força total. E eu também.
- Gi? Cadê você? – Perguntei abrindo a porta do quarto dela sem nem ao menos bater. Não que fosse normal eu invadir espaços alheios sem avisar, mas era um caso de urgência.
- To aqui no terraço. – A voz de Gi surgiu do alto.
Subi correndo e a encontrei entre uma confusão de papéis, canetas e réguas.
- Oi! – Gi me disse sorrindo feliz.
Eu me aproximei e a abracei com força.
- Obrigada! – Agradeci feliz.
- Meu Deus, o que eu fiz de bom pra ganhar um abraço desses? – Gi me olhava curiosa.
Eu mostrei pra ela o que trazia nas mãos, o saquinho com as pétalas e o envelope.
- Humm, eu sabia que era só um arroubo de raiva. – Disse com aquele jeitinho tímido que ela ainda não perdera.
- Era mais que isso, mas mesmo assim, é uma lembrança que merece ser guardada, mesmo que eu não consiga ter entendido até agora o que essa frase significa, mesmo tendo quase certeza pela cor da rosa, foi um momento tão mágico estar com Victor, mesmo que agora doa não saber notícias dele, eu mereço guardar essa lembrança.
- Lan, eu tava pensando aqui.... – Gi me olhou com uma carinha sapeca.
- O que essa cabecinha tá aprontando agora. – Eu perguntei já me preparando pra quase todo tipo de resposta.
- Sabe o que eu acho? – A carinha sapeca ainda estava lá.
- Não, Gi. O que você acha? – Gi coçou a cabeça de uma forma engraçada que só ela fazia e me olhou séria.
- Acho que você tá apaixonada!
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Amanhecer em Canção
RomansAlana é uma mulher independente e completamente dona do próprio nariz. Aos 38 anos, separada e com dois filhos já encaminhados, nada lhe escapa ao controle. Mantém sua vida sob total vigilância para que nada aconteça de forma diferente do que ela pl...