Capítulo 16

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A gargalhada de Victor tomou o corredor e eu ouvi seus passos se aproximarem dos meus. Acelerei para que ele não pudesse me pegar e me escondi atrás do fogão, abrindo e fechando as panelas.

- Não gosto quando você foge! - Ele disse dando a volta no fogão e me abraçando por trás.

- Eu não fugi, corri pra comida, to com fome! - Respondi rindo. - Muita fome.

- Eu gosto do seu jeito! - Ele declarou solene sem me soltar. - Você é leve, não trás consigo aquela pressão incomoda no olhar, como quem estivesse pedindo ou esperando mais. - Droga, a fala dele trouxe de volta a minha culpa. - Você tem um sorriso fácil, mesmo quando sua cabecinha fica borbulhando. - Os braços dele me apertaram mais e ele encaixou o rosto no meu pescoço, beijando e cheirando toda sua extensão, me fazendo esquecer novamente a culpa e colocando um sorriso feliz em meus lábios. - E cheira tão bem que eu tenho vontade de ficar te cheirando o dia inteiro. - Victor me virou em seus braços e passou a mão pelos próprios cabelos. - Eu me sinto vivo ao seu lado. - Uma tristeza cruzou rapidamente seu olhar. - Eu não me sinto vivo assim há algum tempo.

Pronto, o peso da minha culpa me tomou inteira e com tal força que meus olhos umedeceram e meu sorriso desapareceu de pronto.

- O que foi? - Uma ruga de preocupação surgiu em sua testa. - Eu disse algo de errado? - Victor olhou pra cima provavelmente repassando o que tinha falado.

- Não, você não disse nada de errado. - Eu falei pegando suas mãos, puxando-o para os bancos do outro lado balcão e o fazendo sentar em um deles, de forma que nossos olhos estivessem da mesma altura. - Eu tenho uma confissão a fazer. - Disse em tom solene.

Victor levou a mão ao peito de forma teatral e usando um tom zombeteiro declarou arregalando os olhos:

- Você não era virgem?

Eu não pude evitar um sorriso fraco, mesmo tendo ímpetos de matá-lo naquele momento por fazer troça com minha confissão.

- Eu to falando sério! - Reclamei usando o mesmo tom solene de antes.

- O que você pode ter feito de tão sério, entre o momento em que eu acordei e agora, que lhe entristeceu e lhe deixou os olhos molhados? - Victor tinha uma forma gentil de lidar com as coisas, mesmo tendo um olhar desconfiado, ele estava sendo extremamente cuidadoso e carinhoso.

- Eu não resisti e fui fuxicar as suas fotos em cima do gaveteiro. - Fiz um bico assim que acabei de falar.

- Tá tudo bem! - Ele respondeu parecendo aliviado com minha confissão. – Se eu não quisesse que você as visse, eu as teria escondido. – Ele não estava me levando a sério, mas eu também não havia explicado direito.

- Não tá. - Eu me afastei dele e sentei no banco atrás de mim. - Eu me senti mal, eu invadi a sua  privacidade.

- Alana, mais do que invadimos a privacidade um do outro a noite toda é impossível! - Victor cruzou os braços no peito e pela primeira vez sua voz soava impaciente.

- É diferente, são fotos suas, com sua família, seus filhos, sua esposa... - Eu baixei o olhar por um segundo.

- Chegamos então no ponto. Minha esposa! - Aquele tom impaciente ainda estava lá, mas mais contido.

- Devo estar parecendo uma louca sem falar coisa com coisa. - Eu sacudi a cabeça tentando organizar meus pensamentos e um sorriso torto surgiu no rosto dele confirmando a minha fala. - Vou tentar me explicar melhor. - Respirei fundo e só recomecei a falar quando meus pensamentos estavam realmente organizados. - Eu sei que é de conhecimento público, a imprensa fez questão de alardear aos quatro ventos tudo que sua família passou. - Ai meu Deus, agora ele me olhava sério demais, o semblante quase fechado e os olhos apertados focados nos meus. - Quando comecei a olhar as fotos a primeira reação foi uma pontada de ciúme. - a última palavra foi quase um sussurro, era extremamente vergonhoso assumir aquilo. - Eu nem sei explicar essa pontada, enfim... - Mais uma respiração. - Mas quando olhei a foto de vocês em torno dela e ela já doente... - Como era difícil falar aquilo pra ele. - Eu simplesmente esqueci que além de artista você também tem uma vida particular, que você também tem suas dores, suas mágoas e aquela foto me fez juntar os dois, eu me senti mal por ter desrespeitado sua intimidade como pessoa, eu não estava preocupada com isso e me envergonho por isso.

Victor me olhava ainda sério e meu peito se apertou com força fazendo meus olhos mais uma vez se umedecerem. Eu não tinha ideia do que ele pensava e aquilo estava me matando.

- Deixa ver se eu entendi. - A voz dele voltou ao tom manso e arrastado. - Você tá dizendo que passou a noite, não comigo, mas com seu ídolo, e que quando viu as fotos por sobre o gaveteiro, como mágica, lembrou que eu era mais que isso? - Eu não respondi então ele continuou. - Achei que a questão "paixonite adolescente" tinha ficado lá na mureta de pedra juntamente com o "quero e vou ter". – Seu olhar era triste ao falar. - Mas pelo visto não foi bem isso que aconteceu. Nós tínhamos concordado em aproveitar a noite, nos conhecermos mais. Alguma coisa mudou no momento que nos separamos até a hora que fomos dançar. Isso é claro pra mim. Eu inclusive te perguntei sobre. - A voz dele tinha mudado, mesmo se mantendo mansa e arrastada, tinha um que de decepção misturado com mágoa e aquilo me atingiu em cheio. - Mas o que mudou?  Em algum momento eu não fui sincero? Ou talvez eu tenha acelerado demais, pressionado até, mesmo inconscientemente?

Ele não me fez a pergunta diretamente, parecia mais estar perguntando a si mesmo. Eu precisava explicar, ele havia sido sincero o tempo todo e eu, mesmo achando que também estivesse, não fui.

Eu me aproximei com o coração disparado, não seria estranho se ele se afastasse e eu seria obrigada a entender. Mas, mesmo com medo dele rejeitar meu abraço, me encaixei entre suas pernas  e apoiei minha cabeça em seu peito olhando em direção ao seu rosto. Victor não retribui o olhar, seu olhar estava perdido em algum ponto além das paredes daquela casa.

- Você foi sincero, transparente e direto, talvez até demais. - Ele não me afastou, mas também não devolveu o abraço e nem baixou o olhar. - Acho que quem não foi sincera fui eu. Quando conversamos na murada eu realmente acreditei em você e também fui completamente sincera ao dizer que não era uma reação a minha "paixonite adolescente". Mas, quando nos separamos, eu refleti sobre o que você falou e... - Um suspiro pesado me escapou dos lábios. - Eu já tomei meus tapas nessa vida e, por mais que eu sempre me encontre aberta a viver o que a vida tem a me oferecer, eu sou extremamente desconfiada. - Os olhos deles finalmente baixaram encontrando os meus me dando mais confiança pra continuar. - É fácil aproveitar a vida quando eu tenho certeza que é coisa de momento, que vai ser passageiro. - Soltei o abraço e lhe toquei o rosto carinhosamente. - Mas você me fez sentir algo diferente e eu me apavorei. Reverti esse medo em desconfiança e enfiei na cabeça que você só queria jogar, como você havia dito....

- Eu mudei de opinião... - A voz entristecida foi como uma pancada em meu peito.

- Eu sei, eu acredito plenamente nisso, só que fiquei confusa e me protegi do que estava sentindo, separando o homem do artista. Era mais fácil e menos arriscado. - Voltei a abraça-lo e agora suas mãos pelo menos me seguravam pela cintura. - Eu não estava com o artista, nem por um momento foi o artista que eu quis, por mais que possa parecer confuso depois do que eu disse antes, foi o homem que me amou ontem, foi o homem que me prometeu a lua e me entregou as estrelas, foi nos braços do homem que adormeci e é com o homem que eu estou falando agora.

Victor me abraçou forte e me manteve ali por um tempo incontável só se afastando quando mais uma vez meu estômago reclamou emitindo aqueles barulhinhos vergonhosos de novo.

- Vem, você está com fome e me parece que seu estômago tá bem bravo com isso. - Victor deu a volta no fogão e começou a mexer novamente nas panelas. - Temos ovos, bacon, café, leite, pão, suco, frutas... - Ele levantou a cabeça pra me olhar. - Eu não sabia do que você gostava então fiz um pouquinho de cada. - Falou com aquele sorriso de derreter geleiras.

- Um pouquinho de cada, menos de leite, não gosto de leite. - Falei me esforçando pra parecer normal e Victor começou a me servir o café.

Eu o olhava com o peito apertado e dolorido. De alguma forma ele havia realmente se entregado aquela noite. Era óbvio pra mim agora que ele criara expectativas assim como eu e era óbvio também que ele tinha ficado magoado por eu não ter sido sincera em dividir minhas desconfianças com ele, quando ele o tempo havia se aberto e se exposto além do imaginável para alguém que acabara de conhecer.

Victor serviu os pratos e deu a volta no balcão, me dando um beijinho leve nos lábios antes de sentar no banco de madeira a minha frente.

- Vai ficar tudo bem. - Disse num tom desprovido de emoção.

Eu não respondi. Não conseguiria devido ao nó que se formou na minha garganta. Eu havia desperdiçado a chance de, quem sabe, tê-lo por mais tempo comigo, indiferente de quanto fosse esse tempo. Minha desconfiança havia jogado pelo ralo qualquer chance futura, e agora me cabia a responsabilidade de lidar com isso.

Amanhecer em CançãoOnde histórias criam vida. Descubra agora