Chegamos cedo à Fazenda do Digão. Ele havia caminhado por boa parte do espaço conosco, nos mostrando todos os detalhes, era um lugar lindo. A sede era uma casa antiga, branca de janelas azuis, com o piso todo em madeira e uns dez ou mais quartos, acho que perdi a conta no quinto. A cozinha era gigante, parecia aquelas cozinhas dos restaurantes famosos de tão completa e encantava pela mistura do moderno com o tradicional, de um lado bancadas de aço, micro-ondas e geladeiras de última geração, do outro um enorme fogão/forno a lenha e longos balcões de madeira.
O jardim frontal era uma mistura de figuras místicas - como a estátua da Deusa Afrodite no topo de um chafariz - com pequenas figuras de contos de fadas e lendas brasileiras – como um círculo formado pelos sete anões e o saci. Bancos de jardins, brinquedos de crianças e pequenas áreas cercadas com os mais variados tipos de flores, completavam o local, numa harmonia inimaginável.
Mas o que mais me encantou foi o que o Digão chamava de "Canto da Inspiração". O "Canto da Inspiração" era formado por um grande quiosque coberto por folhas de palmeiras, tendo no centro um círculo de pedras demarcando uma área de fogueira e no seu em torno troncos das mais diversas formas e tamanhos, que eram provavelmente usados como bancos, reforçavam a rusticidade do local.
A uns vinte metros uma mureta de pedras beirava o declive que levava a margem do rio que margeava a propriedade, dando um ar místico ao local. Descendo as escadas que beiravam a mureta de pedras havia um deck, com um barco aportado de um lado e um cercado de madeira do outro, criando ali uma área de banho. Em meio a árvores que cercavam a clareira do "Canto de Inspiração" um caramanchão largo e alto abrigava redes e esteiras. Do outro lado uma grande mesa de madeira estendia-se entre a porta da cozinha e um grande buraco cravado de espetos gigantes que assavam parte do almoço no famoso "fogo de chão".
Digão nos contou que era ali no quiosque que se reuniam para cantar com os amigos, para escrever novas músicas, para curtir com a família, ali eles recebiam as comitivas que passavam. E no caramanchão eles abrigavam os peões das comitivas nas noites mais quentes. Ele claramente amava aquele pedacinho de sua fazenda de uma forma especial.
- Aqui é onde a mágica da vida acontece! – Ele havia dito em um tom solene quando nos mostrara.
O tour pela propriedade terminara com todo o grupo sentado na grande mesa de madeira, Digão numa cabeceira, Zé Otávio na outra. Nós, as famílias de nossos anfitriões e os demais convidados estávamos misturados pela mesa, lotando toda sua extensão. Conversas de todos os tipos se cruzavam, causos eram contados, risadas se faziam presentes o tempo todo, transformando aquele momento em uma canção de amor e felicidade.
Por diversas vezes Gi me chamara atenção por eu estar muito calada, muito introspectiva, mas eu não conseguia agir de forma diferente, estar ali era a realização de um sonho que eu nem imaginei sonhar. Eu sempre fui apaixonada pela natureza, por essa vida simples do campo e, principalmente, pelo pantanal com sua fauna e flora exuberante. Por diversas vezes na juventude me imaginava participando de comitivas, lidando com gado, galopando pelos campos. E, juntado isso a presença do Digão e Zé Otávio contando causos e nos acolhendo com tanto carinho, meus pés fugiram do chão, era como se eu tivesse vivendo um sonho e não a realidade.
Um diálogo entre Digão e sua esposa, que ele carinhosamente chamava de docinho, me tirou daquele momento introspectivo e eu precisei disfarçar para que eles não notassem meu interesse no teor da conversa.
- Ele deve estar chegando, Docinho. – Digão respondia a esposa que sentira falta da presença de Victor. – Sabe como ele é, deve estar vindo montado, ele adora cavalgar por entre as fazendas. Se deixar ele passa o dia inteiro em cima do cavalo.
Docinho riu e revirou os olhos antes de responder.
- Esse menino não tem jeito não. Vou deixar o quarto pra ele pronto. Ele nunca consegue voltar quando vem a cavalo, principalmente em dia de festê. – Digão riu concordando com ela e mudaram de assunto.
Minha memória logo trouxe imagens de Victor na novela montado em um alazão com sua capa pantaneira e um suspiro me escapou dos lábios. Olhei em volta me certificando que havia passado despercebido e contive minha imaginação, evitando outros suspiros.
Quando o almoço terminou, Digão avisou sorrindo com um jeito bonachão que era a hora da sesta. Parte do grupo se acomodou nas redes do caramanchão, outros estenderam esteiras na beira do rio, o povo da fazenda se recolheu em seus aposentos e de repente, o barulho das conversas e risadas transformou-se em silêncio permitindo que a natureza se fizesse escutar em todos os seus sons e tons maravilhosos.
Eu não quis dormir, não conseguiria na verdade. Tomei uma trilha que beirava o rio e caminhei por uns dez minutos até encontrar um grande balanço preso a uma árvore frondosa. A vista dali era maravilhosa, o Sol ainda alto refletia nas águas claras do rio, os pássaros revoavam de tanto em tanto em um balé encantador, o vento jogava as folhas de um lado para o outro causando um farfalhar que me levava a embalar o balanço no mesmo ritmo suave. Do ponto onde eu estava também avistava os fundos da casa e o "canto de inspiração". Meus pensamentos se desligaram completamente, eu era só emoção, só sensação, um misto de paz e alegria tomaram meu peito e lágrimas escorreram pelo meu rosto de encontro aos meus lábios, eu sorria escandalosamente feliz.
Uma voz grave, rouca e macia soou atrás de mim, quase me trazendo para a realidade.
- "O sorriso que lhe tomava o rosto me aqueceu o peito, mas logo suas lágrimas vieram..."
- "... e me encheram de dor..." – Eu completei o verso da canção sem ao menos olhar pra trás.
- Você conhece! – A voz disse de forma alegre.
- Conheço! – Eu respondi no mesmo tom.
- Desculpe se atrapalhei seu momento. – A voz era acolhedora.
- Não atrapalhou, muito pelo contrário, o tornou mais especial! – Minha voz era um fio, quase um sussurro.
Eu não me movi, não olhei pra trás, não sabia dizer se era sonho ou realidade e, de verdade, não queria descobrir.
- Posso? – A voz perguntou ao mesmo tempo em que eu senti um par de mãos roçarem levemente meus quadris ao segurarem as cordas do balanço.
- Pode. – Fechei os olhos por um momento e me deixei embalar sem me preocupar se era um sonho ou se era real.
Não sei exatamente quanto tempo ficamos ali em silêncio, ele embalando o balanço e a mim.
- Fica bem! – O ouvi dizer quando mais uma vez as mãos tomaram minhas costas.
Demorei certo tempo para notar que ele havia ido embora e finalmente olhei pra trás procurando-o. Mas ele não estava mais lá, ou nunca esteve, eu não tinha como saber.
Um zumbido de vozes chamou minha atenção e observei a margem do rio onde a sede da fazenda se localizava, o movimento já era novamente intenso por lá, era hora de voltar.
Segui a mesma trilha pensando no que tinhaacontecido. Realidade ou sonho? Eu não sabia diferenciar. A única certeza quetinha é que tinha sido especial, muito especial.
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Amanhecer em Canção
RomansAlana é uma mulher independente e completamente dona do próprio nariz. Aos 38 anos, separada e com dois filhos já encaminhados, nada lhe escapa ao controle. Mantém sua vida sob total vigilância para que nada aconteça de forma diferente do que ela pl...