Capítulo 1

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Chicago, 26 de Novembro.

Tyler

Um telefone tocando no meio da madrugada geralmente não significa boa coisa, especialmente no meio da semana. As pessoas decentes estão dormindo, cuidando de suas vidas em casa, e não caçando qualquer tipo de aventura nas ruas.
Eu levanto da cama ciente que devo ter dormido apenas duas ou três horas, já era madrugada quando finalmente consegui pregar os olhos e descansar até que o som estridente me acordasse num susto. Onde eu enfiei esta merda?
Ando pelo quarto meio tonto, tentando achar o barulho até que encontro o aparelho piscando sobre a pia do banheiro. Cinco anos de serviço militar como fuzileiro naval, mais oito trabalhando como oficial de policia e sete como investigador criminal e eu demoro uma vida pra encontrar uma merda de telefone.
Atendo a central e recebo os dados do chamado. Aproveito pra me olhar no espelho, um rosto inchado e a barba por fazer me deixam aparentando uma idade superior aos meus 40 anos. Adicione a isso um divórcio recente, uma residência temporária em um quarto de hotel e uma alimentação precária e terá o currículo da maioria dos policiais que eu conheço.
Eu sonhava com uma carreira como jornalista investigativo. Nesta idade era pra eu estar ganhando um Pulitzer, e não tentando achar uma camisa limpa dentro de uma caixa de papelão. Me visto o mais rápido que posso e o ar gelado da madrugada me arrebata, congelando minhas narinas até que eu entre no carro. O endereço é próximo e não demoro muito até o prédio. Sanchez está me esperando próxima a uma viatura com as luzes vermelhas e azuis piscando.
Rafaella Sanchez é minha parceira há três anos desde quando foi transferida de Dallas para Chicago. Eu a conheço bem e só sua expressão já me diz que as coisas não estão boas. Desço do carro e novamente o frio me faz xingar mentalmente. Pelo menos não está chovendo ainda.
– Os vizinhos ligaram para a polícia quando o som do apartamento começou a tocar no último volume às três da manhã. – ela não me dá nem um “bom dia”, embora o correto seria “boa madrugada”.
– Tentaram bater na porta ou a campainha? – pergunto andando com ela até a porta de vidro do prédio.
– Por uns dez minutos antes de ligar 911. – ela responde cumprimentando com a cabeça alguns dos oficiais em uniforme.
Não sinto falta do meu tempo de patrulha. Nenhum pouco. Apesar da minha vida não ser exatamente invejável agora.
– Quando arrombaram a porta encontraram o morador, Gavin Linden, sem vida na cama. A perícia já começou os trabalhos. – ela continua no trajeto do elevador.
O “pim” nos dá acesso ao corredor com a movimentação de vários vizinhos curiosos e alguns policiais, embora a área devesse estar completamente isolada. Encontramos o oficial Gartner na porta do apartamento e ele nos cumprimenta para o briefing do que sabem até agora.
– Gavin Linden, 32 anos, caucasiano, advogado tributário atualmente trabalhando numa indústria farmacêutica. – Gartner anda conosco dentro do apartamento. – Ele aparentemente sufocou até a morte com algum objeto não identificado.
Chegamos na porta do quarto onde o Sr. Linden está, ou pelo menos o que restou dele. O corpo está sobre a cama, meio sentado com a cabeça apoiada na cabeceira e o travesseiro nas costas. Ele está vestido com jeans e camiseta, embora os pés estejam descalços. As marcas roxas em sua face e os pequenos pontos debaixo dos olhos mostram que a asfixia foi intensa.
– Há quanto tempo ele está morto? – pergunto à perita legista. A equipe inteira é velha conhecida, acho que por isso não sentimos a necessidade de cumprimentos. Vi todos ainda no dia anterior, num acidente de carro.
– Pelo menos cinco horas. – ela me responde.
– Entre nove e dez horas, então. – concluo e ela concorda comigo.
– Pode ter sido um acidente com o jantar. – Sanchez anda pelo quarto enquanto os peritos batem fotos de tudo.
– Sem nenhum vestígio, farelo ou embalagem de comida? – olho bem perto do rosto de Gavin. Seus olhos abertos e sem vida estão vermelhos, típico de um sufocamento lento e doloroso.
– Quando eu era criança tinha uma bala que matava mais do que acidente de carro. – ela brinca e eu rio. Eu me lembro disso. As crianças já aprendiam a fazer a manobra Heimlich no jardim de infância, pelo menos nas escolas chiques.
Onde eu cresci, uma região mais pobre e metropolitana, uma criança a menos não fazia muita notícia nos jornais, especialmente uma criança negra.
– Ele pode ter comido a bala na cozinha e vindo até a cama, depois se engasgado. – ela ainda tenta, mas algo está errado nesta cena.
Eu geralmente confio nos meus instintos, e algo me diz que não estou diante de um simples acidente. Mas Sanchez está certa. Temos que começar com as teorias simples. É assim que funciona. Levantamos as hipóteses e vamos clareando as coisas de acordo com nossa experiência. Só estou extra rabugento pelo sono e pelo frio.
Dou uma volta na cama do homem, desviando dos cientistas forenses. Me curvo para olhar debaixo da cama e olho o corpo novamente.
– Nenhum chinelo. – afirmo. – De fato, nenhum calçado ao redor da cama.
– Ele deve gostar de andar descalço. Eu conheço algumas pessoa com este hábito. – ela me encara séria.
– Nenhuma sujeira ou pó nas solas dos pés, Sanchez. – aponto. – Ou este homem tem a casa mais limpa do mundo, ou...
– Ele não andou descalço de lugar nenhuma até a cama. Péssimo hábito, por sinal. – ela conclui.
– Vamos pedir as filmagens das câmeras de segurança do prédio. Vai ajudar a descartar a possibilidade do Sr. Linden ter tido companhia.
– Farei isso Det. Mckenzie. – Gartner acena pra mim com a cabeça.
– Vou descer falar com o porteiro sobre qualquer visita nesta noite. – Sanchez também se dirige para a saída do quarto.
– Quero as digitais do apartamento todo. – digo aos peritos e saio do quarto para a cozinha.
Abro os armários de Gavin e olho dentro do lixo da cozinha. O lugar está limpo como uma UTI de hospital. Até demais.
Bala o caralho. Além de Gavin ter um estoque de comida orgânica em casa, o que me faz crer que ele não jantaria um açúcar industrializado, minha intuição me diz que a organização do lugar é proposital. Ele não estava sozinho e eu aposto meu pescoço como ele foi assassinado. Eu só preciso entender a história que ele está me contando.
Sanchez não retorna com nada do porteiro. Ele entrou meia noite para trabalhar, então temos que conversar com o porteiro que o precedeu, mas ele nos fornece as gravações da movimentação do dia anterior sem nenhum problema. Vou com minha parceira direto à delegacia, nem que eu queira vou conseguir voltar a dormir agora, mas paramos numa cafeteria no caminho, o dia começa a amanhecer, embora a luminosidade esteja reduzida pela chuva.
– Ótimo, era o que faltava. – me descontento dando uma breve corrida até a porta do estabelecimento.
– Pare de reclamar, Tyler. – Sanchez me recrimina batendo o casaco molhado para se livrar dos pingos.
– Odeio Novembros. – reclamo mais um pouco e ela revira os olhos.
– Ao menos estamos no fim de Novembro. – ela tem uma visão do copo meio cheio.
A moça do balcão me olha de cima a baixo e olho o cardápio inutilmente. Meu pedido é sempre o mesmo.
– Café, preto e sem açúcar.
– Combina com você. – ela resmunga apertando qualquer coisa na telinha em sua frente.
– Me desculpe, eu não entendi. – entendi sim, só quero que ela repita a má educação pra garantir mesmo que meu dia vai ser uma bosta.
– Preto e sem açúcar. – ela repete corajosa.
Eu devo ter confundido a ousadia dela com um desdém, porque, na segunda vez que ela fala, as palavras vêm com um sorriso que parece um elogio à minha aparência, embora ela tenha me chamado de amargo. Quem sabe o mal educado sou eu, afinal.
– Aqui está o número dele, querida. – Sanchez estica o meu cartão pra ela. – Ligue quando sair. Agora precisamos dos nossos cafés pra viagem.
A garota pega o cartão com um pequeno sorriso e logo nos entrega o expresso duplo e o latte para viagem.
– Obrigado. – resolvo ser um pouco mais açucarado com a garota e ela enrubesce.
– Ah, por favor. – Sanchez vai saindo com impaciência.
– O que? – digo assim que ganhamos a calçada e a chuva. – Foi você que deu meu número pra moça, Rafaella.
– Você precisa transar, Tyler. – ela observa com um tom jocoso.
Eu não consigo replicar. Eu realmente preciso transar e Rafaella Sanchez me conhece o suficiente para saber que eu não trepo com ninguém desde meu divórcio. Ou melhor, desde alguns meses antes do divórcio, já que eu e Sasha não estávamos mais dormindo juntos ou fazendo sexo por um tempo antes que eu saísse de casa.
– Está tão evidente assim? – pergunto assim que entramos no carro pra fugir da chuva.
– Mais evidente do que a morte de Gavin Linden.
– Merda. – passo a mão pela cabeça pra me livrar da sensação úmida dos pingos.
– Se até a caixa da cafeteria nota que te falta açúcar, Ty, algo está errado.
– Não é fácil, Lella. Como eu vou simplesmente transar com alguém?
Ela dá de ombros e olha pela janela. Não é realmente o melhor assunto para nosso início de manhã, mas até onde sei, encarar um defunto também não é a forma ideal de passar a madrugada.
– Você começa tirando as roupas... – ela ri.
– Engraçadinha. – meu mau humor aumenta.
Termino o café quase frio já na minha mesa, olhando fixamente para o computador.
As filmagens do hall de entrada não mostram ninguém, nem no elevador. Ninguém além dos moradores, ninguém suspeito. Nada. Se Gavin teve companhia deve ter sido de um fantasma, ou um vampiro, que não tem imagem gravada nem reflexos nos espelhos. Esfrego o rosto. Puta que pariu, estou cansado.
– Então podemos estar mesmo falando de um acidente. – Sanchez me olha.
A mesa dela fica colada à minha. Nossos computadores de costas um pro outro, basta um esticar de pescoço para que eu veja o rosto moreno e ovalado de Rafaella. Tombo meu corpo para o lado e vejo que ela soltou os cabelos negros. Eles estão na altura dos ombros, e concluo que ela deve ter cortado nos últimos dias. Sasha sempre reclamou da minha falta de atenção à sua aparência.
“Você consegue desvendar um crime, mas não consegue ver quando eu aparei meu cabelo?”, ela dizia em tom irônico. Este tipo de argumentação me fez mais sensível ao cabelo das mulheres, já que elas mesmas são sensíveis sobre o assunto. É uma pena que seja tarde demais pra Sasha e eu.
– Ou de uma entrada alternativa ao prédio. – levanto as sobrancelhas pra ela.
– Vou voltar ao prédio, ver o que deixamos passar. – ela levanta e pega o casaco.
– Vou ao trabalho de Gavin, ver se encontro qualquer pista sobre o que ele fez ontem. – meu corpo parece pesar uma tonelada quando saio da cadeira.
Vai ser um longo dia.

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