Capítulo 13

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Tyler

Rafaella me olha de um jeito esquisito assim que desligo o celular e volto para minha mesa. Devo estar parecendo bem perturbado, o suficiente para que ela não me dirija nenhuma palavra pessoalmente e só aponte a tela do computador.
Abro meus arquivos para achar a lista de frequentadores de Safeword no mês de novembro. É uma multidão. Milhares de nomes que nosso departamento de informática já classificou alfabeticamente, e ao lado de cada um deles, datas de frequência no local mais desconcertante do planeta.
Eu passo reto pelo G de Gavin e vou para o I. Caralho, eu acabei de ser rejeitado por Italia, e ainda assim algum gatilho obsessivo da minha cabeça quer saber sobre ela. Italia Bianchi, ao menos duas vezes por semana. Isso me causa um estranhamento. Só na semana anterior ela foi bem mais vezes que isso.
Acho que o animal feroz e selvagem que existe nela precisou de alimento mais vezes durante a semana que nos conhecemos. Volto a Gavin. Como disse seu colega de trabalho, ele tinha motivo para chegar cheirando álcool e festa nas manhãs no escritório, pelo menos uma vez na semana, às vezes duas.
– Acha que a pessoa que matou Linden pode estar aí no meio? – Sanchez aponta a lista parecendo desanimada.
– Tudo é possível, Lella. – suspiro. – Parece que estamos sem saída. O apartamento foi minuciosamente limpo, ele foi vestido depois de morto e a pessoa queria que achássemos o corpo porque colocou o rádio dele pra tocar música de madrugada. É tudo sinistro e sem sentido.
– O amigo dele não deu mais nenhuma informação importante? – Rafaella balança os cabelos e os prende num coque sobre o topo da cabeça.
Ela tem o rosto ovalado e o queixo pontudo. Sua pele morena se destaca sem o mar de cabelos negros emoldurando a face e admiro a beleza latina dela. Sanchez é uma das pessoas mais inteligentes que eu conheço e se ela está preocupada com o rumo das coisas, é porque estamos de fato num labirinto. A vejo prender os lábios, apreensiva. Que merda de segunda feira.
– Fred Preston não me ajudou em nada. Mas ele estava em choque. Fiquei de falar com ele esta semana. – esfrego o rosto.
– Tomara que haja qualquer coisa aí. Tirando as idas ao tal Safeword, o homem era um santo! Quase bom demais pra ser verdade.
– Geralmente é bom demais, Lella, e é mentira. – concluo.
Sanchez me encara e cruza os braços. Eu repasso todos os dados que temos até agora, fazendo e refazendo minhas anotações até que saímos para o almoço. Rafaella adora um restaurante tailandês na esquina, eu acho péssimo cheirar curry o resto do dia, mas a acompanho e ela aproveita o tempo pra me contar sobre um encontro qualquer que teve.
Geralmente os homens se afastam dela pela profissão. Homens tem uma imensidão de coisas a aprender sobre emasculação com mulheres que parecem mais “fortes” que eles. Eu às vezes penso como é frágil a nossa assertividade sobre nossa própria existência, já que qualquer coisa abala nossa capacidade de nos sentir viris e potentes. Seja uma mulher com uma profissão de poder, ou uma usando um chicote com habilidade de domadora de leões.
Não me sinto particularmente ansioso para encarar o Dr. Newman, mas é uma das poucas coisas que podem me tirar do marasmo que está sendo este dia.
O velhote está como sempre, parecendo mumificado em sua poltrona, com um caderninho no colo e seu olhar atento por cima dos óculos. Eu o cumprimento e sento na frente dele, tentando recobrar na memória todas as coisas que pensei em falar pra ele sobre minha semana. Na verdade eu adoraria vomitar nele todos os absurdos que me aconteceram.
Dou uma risada solitária em imaginar a cara dele se eu abrisse a boca agora pra dizer “fui espancado, humilhado, ofendido, insultado, levado a ódios e prazeres extremos e descobri que metade dos meus problemas estão ligados às minhas concepções equivocadas de mim mesmo.”. Seria memorável.
– Parece animado, Tyler. – ele observa.
– Estou rindo de conjecturas, Dr. Newman. – e minimamente da sua cara também.
– Fizemos algum progresso na sessão passada. Você parece bem.
– Você nem imagina, doutor. – digo lembrando do meu progresso para dentro do corpo de Italia.
– Quer me contar sobre isso?
– Eu conheci uma mulher.
– Isso é saudável.
– Não necessariamente, doutor. Você não conhece essa mulher. – uma breve imaginação do pobre Dr. Newman em Safeword me arranca outra risada.
– Por que você diz isso exatamente?
– Porque ela me fez ver que eu tenho raiva de Sasha. Eu me dediquei a ela, por anos e Sasha me traiu, me trocou por um qualquer. E eu ainda achava que a queria de volta mesmo depois de tudo isso. – parece que uma parte bem escura de mim acaba de me abandonar.
Me sinto feliz em falar com clareza que Sasha teve outro homem e que por muito tempo eu achei que a culpa era exclusivamente minha.
– Tenho tentado fazer você enxergar isso semanalmente, Tyler. – ele me encara surpreso.
Pegue um chicote, doutor, pode ser que funcione melhor essa coisa toda.
– Eu me achava ruim para ela, como pessoa, como homem, como companheiro. Mas ela foi má comigo também. Ela dormiu com outro cara e eu achei que era minha culpa.
– Ninguém é só mal ou só bom, Tyler.
– Eu descobri isso também. – suspiro fundo e me encosto relaxado na poltroninha que mal acomoda meu corpo. – Eu me achava um cara bom, que não merecia o que estava acontecendo comigo. Depois um cara mau, que era culpado de tudo.
– Hoje você sabe que existe um meio termo para isso?
– Completamente. Todo mundo é capaz de fazer o bem. Mas também é capaz de fazer o mal, Dr. Newman. – aperto as mãos como se o pescoço de Italia estivesse entre meus dedos. É a prova do que estou dizendo. – Basta saber quais botões vamos apertar na nossa cabeça.
– Tudo isso por causa desta mulher que você conheceu? – seus olhos me encontram por cima dos óculos.
– Foi uma série de encontros bem intensos. – justifico.
– Imagino. E como você está lidando com tudo isso? Vai vê-la novamente?
– Estou ainda descobrindo como posso me sentir. Eu tive várias catarses, doutor. Foi maluco e doloroso. Ela não quer me ver novamente.
– Você parece frustrado com isso.
– Obviamente. Ela me deu algo que eu precisava, mas não sabia. Inclusive, doutor, a parte sexual está funcionando perfeitamente bem. Nenhuma falha ou interferência da minha ansiedade na habilidade de... o senhor sabe...
– Já entendi, Tyler. Com que frequência você pensou em morte esta semana?
– Só no caso que estou investigando.
– Na sua, ou com morbidade sobre você mesmo?
– Só quando ela tentou me matar asfixiado, doutor. – seus olhos se arregalam apavorados e eu rio genuinamente. É tão absurdo que ele mesmo acredita que eu estava brincando e sorri comigo.
Agora sim eu acredito que estamos fazendo um progresso. Fiz o coroa rir.
Saio do consultório do velho e quando ligo meu celular algumas chamadas perdidas aparecem na tela. Fred Preston me ligou e eu tento retornar, mas como ele está viajando e há uma diferença entre nossos fusos, não consigo retornar a ligação.
Quando volto ao escritório, Rafaella me chama para mais uma ida ao apartamento de Gavin. Os detalhes sempre aparecem em uma segunda olhada, e concordo com ela, temos que ser mais minuciosos.
Só consigo me lembrar do corpo de Gavin na cama, os olhos avermelhados e sem vida enquanto todo o resto parecia impecável. Minha cabeça dá voltas. Rafaella anda pelo lugar tão perdida quanto eu.
– O que estamos perdendo, Tyler? – ela olha novamente.
– Se você me torturasse e me fizesse engolir um testículo, teria que ser algo pessoal, não é, Sanchez? Ninguém mata uma pessoa assim por acaso. É algo premeditado, meticuloso.
– Claro. Obviamente. – ela se aproxima de mim enquanto analiso a cama. – Foi tudo encenado, Tyler. Ele não morreu na cama. Ele foi colocado aí, teve as roupas trocadas e até o horário, 3 da manhã, deve ter uma razão para cada detalhe.
Tento, mas não consigo fazer as associações necessárias com tantas peças faltando ser encaixadas no quebra-cabeça. Quero mais do que nunca falar com Fred. Acho que o que ele tem pra me dizer vai ajudar muito. É uma questão de instinto.
Finalmente começo a procurar aluguéis de apartamentos.
Por mais que seja uma merda admitir, Italia tinha razão sobre eu estar num hotel esperando como se a minha situação com Sasha já não estivesse mais do que clara e definida. Marco os telefones de alguns que me interessam e tomo banho. Quero sair deste, como foi que ela disse mesmo, quarto decadente de hotel, ainda mais porque me lembra dela, de estarmos sobre a mesa, na cama, no chão, satisfazendo nossos corpos enlouquecidamente, no bom e no mau sentido.
Sinto falta de fumar, então decido ir comprar um cigarro e no caminho vejo que tenho uma mensagem de voz no celular. O número não é conhecido, e a escuto enquanto caminho na noite fria atrás de um dos prazeres que me matam aos poucos.
“Detetive McKenzie, estamos desencontrados pelos fusos, aqui é Fred Preston. Eu me lembrei de algo que possa ser interessante sobre meu amigo Gavin Linden. No Halloween ele ficou com uma garota e ficou meio obcecado por ela. Por muito tempo ela foi só o que ele conseguia falar a respeito. Acha que pode ser relevante?”.
– Tudo é relevante, Fred. – falo sozinho como um lunático.
Tento ligar pra ele, mas no primeiro toque tudo fica mudo. Minha bateria acabou e não tenho como fazer nada a respeito. Fumo um cigarro no caminho de volta ao hotel, pensando na ironia de haver sempre uma mulher que zoa a cabeça de um homem por aí. Talvez tenha sido realmente relevante, ou talvez seja somente mais um pobre diabo como eu, com um tesão fenomenal e desesperançadamente desperto por alguém que se reserva ao direito de recusar e ainda dizer “obrigada”.
A noite vai ficando cada vez mais fria e apresso o passo. Quando chego ao quarto de hotel estou quase congelando e cansado de um dia morno. Minha cabeça deflete a possibilidade de ligar para Fred inconscientemente. Ainda estou semi acordado quando os gemidos de Italia ecoam no meu ouvido, a imagem de sua boca me preenche a mente e eu chego a desejar que o sono me consuma rápido, pra eu parar de delirar lembrando dela. Meu corpo se endurece inteiro de frustração.
Meu telefone ainda ligado no carregador grudado à parede toca insistentemente. Eu pulo para atendê-lo. Pela luminosidade que entra pela janela, está quase amanhecendo.
– Detetive McKenzie, aqui é Fred Preston.
– Oi Fred, ouvi sua mensagem. Não pude retornar.
– Tudo bem. Como eu disse no Halloween eu e Gavin estivemos num bar, chamado Gathering. Era uma festa e tanto. Ele encontrou esta garota e logo em seguida eu precisei viajar, mas nas mensagens que ele me mandava sempre falava dela e sua vontade de estar com ela novamente.
– Certo, Fred, isso ajuda. – pego uma caneta e anoto o nome do bar na minha mão.
– Ele passou a ir num outro lugar que ela ia. Tipo um clube de sexo.
– Safeword?
– Isso, exatamente. Era uma coisa meio esquisita, mas não sei todos os detalhes.
– Você lembra o nome da garota, Fred?
– Não. Eu estava bêbado e louco pela amiga dela, então me perdoe por não ter prestado atenção, e depois ele só se referiu a ela pejorativamente nas nossas conversas.
– Certo, Fred. Mais alguma coisa?
– Se eu lembrar eu ligo novamente, detetive.
– Obrigado. – desligo o telefone e vou buscar algumas roupas.
É bom que Sanchez se lembre que hoje é seu dia de trazer nossos cafés, porque eu vou precisar.

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