Lia
A mão de Tyler corre as minhas costas, aliviando as dores que eu sinto pelas cordas do Shibari. Ser imobilizada dolorosamente é uma punição pra mim, psicológica e física. Primeiro porque me impossibilita de dominar, me força a sentir humilhada e incapaz, depois, as dores são como um castigo merecido pela minha má conduta. Apesar de não transparecer, eu tenho uma consciência, e ela dói tanto quanto meu corpo.
Há dias melhores, outros piores, mas depois que me sinto punida geralmente volto a ser a vaca arrogante e desprezível que preciso ser para manter afastado quem me machuca, ou machuca Erin. É só isso que me importa. O resto é como tem que ser. As coisas são como são, conforme está escrito na pele do Golias negro que me serve de colchão no chão na sala. Eu não faço terapia. Há coisas que preciso mexer dentro de mim e eu sei disso. Não vivo numa absurda negação da realidade. Mas eu não tenho garantias que vou saber lidar com o que eu descobrir de mim mesma.
Se um leão dorme, não o cutuque.
- Onde você estava no dia 26 de novembro, Italia? É só o que eu preciso saber. – Tyler parece suplicante.
Eu sei que ele precisa amenizar suas suspeitas sobre mim, acreditar que eu não seria capaz de matar Gavin Linden, mas eu não posso aplacar isso com a verdade. Suspiro fundo num conflito torturante. Minha cabeça volta à sensação cruel dos meus músculos amarrados. Talvez eu precise me punir mais um pouco pelo que estou prestes a fazer.
– Não posso dizer. – digo sentindo-o se mover e levantar do chão, bravo e frustrado.
– Onde eu estou com a minha cabeça, Italia? Onde? – ele grita e eu sei que eu mereço. – Por que você ficou abalada com a morte dele? O que Gavin Linden fez pra você?
– Eu disse que não podia te dar as respostas que você quer. – grito de volta, furiosa.
É impossível definir quem está usando quem na nossa dinâmica. Eu sei que ele já era um caso psiquiátrico antes de mim. Mas acho que estou estressando todas as esperanças dele de possuir uma mente sã qualquer dia desses. O pior é que eu não queria fazer isso, nem mentir, nem dissimular. Eu confio nele e gostaria que ele confiasse em mim. Mas isso parece uma realidade pouco provável.
– Eu preciso ficar longe de você. – Tyler é um poço de fúria.
– Fique longe de mim. – reforço sua constatação como mais um golpe no meu juízo. – Há quanto tempo você gosta da detetive Sanchez?
Tyler me encara atônito. Existe um momento preciso em que um atirador de elite pode puxar o gatinho, consideradas as variáveis que garantem o sucesso de atingir seu alvo. Calculei magistralmente o vento, a distância e o movimento do pirata na minha frente antes de disparar e consigo ver sua cabeça explodir.
Não sou nenhum gênio, mas entendo de privacidade. Bastou um olhar na interação entre os dois no meu escritório para ver a fumaça que esconde as chamas. Ele me dá uma risada estridente, como se eu fosse louca. Não é que eu não seja. Está nítido que sanidade também não é meu forte. Mas como ele mesmo disse, minha melhor arma é minha mente perversa, e ela funciona bem face à rejeição.
– Eu não gosto dela. – mais um segredo relevado difícil de retornar ao anonimato.
Levanto do chão com uma energia diferente, me impulsionando a ser cruel. Vejo sua postura se contrariar, como se de algum modo ele ficasse menor. Lanço um olhar enviesado quando passo por ele para acender um cigarro. Seu corpo parece congelado, como se minhas palavras o tivessem chocado tanto que ele não pode se mexer.
- Você dormiu com ela antes ou depois do seu casamento acabar? – puxo a fumaça e me sento numa das cadeiras, endireitando minha postura como aprendi nas aulas de etiqueta quando era mais nova.
– Você é sempre uma filha da puta, Lia? – ele esfrega o rosto e sorrio satisfeita.
Nem sempre. Às vezes sou só uma puta mesmo.
– Pela sua reação, acho que foi antes. Isso explica sua culpa imensa e a dificuldade em aceitar o fim do casamento. Rafaella Sanchez sabe que você fode como um cachorro no cio? Ou com ela você foi contido como era com Sasha?
Ele começa a se vestir sem me responder. Nem precisa. Seu rosto transtornado e os olhos meio arregalados já me mostram que estou acertando perpetuamente meus alvos. Tyler continua demonstrando seu apurado senso de sobrevivência, fugindo quando não consegue encarar o inimigo. Tomo meu vinho com a ciência de que, ao sair pela porta, o detetive McKenzie está se tornando meu pior inimigo.
– Ela sabe que foi mais do que uma trepada com um gosto amargo no final pra você? Ela finge que não aconteceu e isso te mata pouco a pouco? Ela e Sasha estão indo embora de mãos dadas com as suas bolas e você vai ficar só olhando, detetive?
O corpo de Tyler avança sobre o meu e suas mãos agarram meus braços. Ele me chacoalha no ar e bufa no meu rosto com a mandíbula tão tensa que ouço seus ossos estalarem.
– O que você quer de mim? O que você quer? Eu vou matar você, sua piranha de merda. – sua voz é intensa e corajosa. Eu não duvido de nenhuma palavra que ele tenha dito, embora não tenha medo.
Meu objetivo está plenamente cumprido. Acabei de mostrar a Tyler que até mesmo as boas pessoas podem se tornar assassinos frios e sangrentos, desde que apertados os botões certos, ou errados neste caso. Ele mesmo se dá conta disso e me solta com os olhos perdidos. Sei que ele se arrepende e se sente mal por ter me agredido. Eu precisava deste extremo para ele entender que não sou tão culpada quanto ele pensa pela morte de Gavin.
– O que Gavin fez pra você, Lia? – agora ele esfrega meus braços como se quisesse se redimir pela dor que me causou. – O que ele provocou em você pra te levar além da razão, como você acabou de fazer comigo?
– Eu o odeio, Tyler. – posso admitir com honestidade. O próprio Tyler me odiava há segundos atrás.
– Eu quero acreditar em você. Quero confiar no que você me diz, Lia. Mas você é uma contradição ambulante.
– Estou com você na minha casa, pirata. Eu teria que ser muito burra ou muito dissimulada para te receber aqui caso fosse culpada de qualquer coisa. Eu mereço um voto de confiança. – coloco as mãos em seu peito.
– Você me faz encarar meus sentimentos, mas não sabe encarar os seus. E eu falho persistentemente em parar de implorar por você. – ele parece derrotado. Mas eu não me sinto vitoriosa sabendo que ele tem razão.
– Eu prefiro fingir que não tenho sentimentos, Tyler. Eu sou fria e insensível.
– Essas marcas no seu corpo mostram o contrário, Viúva. Você tem sentimentos demais.
– Eu sei que você está assustado. Eu também estou. – eu permiti que ele visse minha fragilidade. Eu não podia estar mais nua que isso. – Só você e Erin conseguem me fazer admitir isso.
– Erin que te “ajuda" desta forma? – ele volta à tortura da minha tarde.
– Não. Ela sabe que quando recorro a Greg para isso depois sempre preciso de um porre e muito sono.
– Greg? Quem é esse cara?
– Ele é o único homem que me toca quando estou imobilizada e submissa.
– Você gosta dele? – ele parece enciumado.
– Não é uma questão de gostar. É uma questão de confiança. Eu confio nele. Sei que ele vai me dar o que eu preciso.
– Eu entendo a libertação pela dor, Lia. Consegui entender no dia que você me bateu impiedosamente. Entendo a libertação pelo sexo, porque você trepa como uma força da natureza. Eu queria acreditar que você faz isso em benefício próprio, pra se divertir. Mas tem algo mais nos seus olhos, que esconde sua verdadeira motivação.
Estamos os dois fodidos, porque eu não tenho como gostar dele sem ter que enfrentar meus demônios e ele não tem como gostar de mim sem arriscar sua vida inteira com o que sobrou como sua rocha de sustentação, seu trabalho.
– Talvez nem eu mesma saiba o que é, Tyler. Só confie em mim.
– Como, Lia? Eu mal te conheço e você só se mostrou pra mim como uma doida sem limites e viciada em riscos e dor.
– Escolha algo que o faria confiar em mim. – minha cabeça grita “não, sua estúpida!” e minha boca já falou.
– Me apresente a Erin. Socialmente.
Percebo meu rosto adquirir um tom maligno e meu coração se acelera instantaneamente. Se Tyler a perturbar eu não vou ter dúvidas sobre o lado a escolher. Mas preciso que ele seja meu aliado.
– Somente se você não mencionar Gavin Linden. – há um craquelado na minha voz que Tyler estranha franzindo o cenho. – Minha única condição. Conhecê-la socialmente significa que você não estará investigando nada.
– De acordo, por enquanto.
Balanço a cabeça num “sim" contrariado. Tyler é esperto e tem armadilhas psicológicas como as minhas. Ele só as usa com mais sutileza.
Depois que ele vai embora eu ligo para Erin. Ela está saindo de um plantão no hospital e mesmo que eu precise acordar cedo para o trabalho no dia seguinte, vem me visitar. Ela e Cecilie são as duas únicas pessoas com acesso a minha casa. Bem, pelo menos até hoje.
Quando ela chega me dá um beijo e um abraço apertado ainda na porta.
– Você cheira a vinho e suor, Lia. – ela dá um sorriso que ilumina seu rosto.
– Sexo e resignação, meu amor. – digo deitando no sofá enquanto ela massageia minhas pernas.
– Pela vermelhidão eu vejo que você visitou Gregory. – obviamente ela sabe quem é o homem que me prende em cordas até que eu confesse até o que eu não pequei. – Mas você não trepa com Greg, então quem é o homem com um sorriso no rosto esta noite?
Olho pra ela e não preciso dizer nada. Erin dá uns tapas em minhas coxas sobre seu colo.
– Filha da puta! – ela ri deliciosamente. – Você está viciada na picada da mamba negra, oficialmente. Já sou fã deste homem, incondicionalmente.
– Vou levá-lo à festa na quinta-feira. – informo já sabendo que Erin vai achar uma péssima ideia.
– Meu amor...
– Não diga nada, Erin. Ele vai.
– Certo. – ela finge fechar um zíper nos lábios.
Erin adquire um tom mais introspectivo, talvez pensando em todas as maneiras que estou usando para afastar Tyler de mim, quando na verdade a exposição da minha depravação só o faz ficar mais próximo.
– Trouxe seu remédio. – ela aponta o pacote sobre a mesa.
Uso remédios para dormir às vezes e Erin os prescreve pra mim. É necessário para me induzir ao sono, especialmente quando minha cabeça está trabalhando incessantemente. Não gosto deles, mas eu passaria a noite toda em claro me lembrando de todas as coisas sórdidas que anuviam meus pensamentos.
– Obrigada. – jogo um beijo no ar e ela sorri.
– Lia, preciso te perguntar uma coisa que tem me incomodado. – seu rosto parece tenso, me endireito no estofado para que nossos rostos fiquem no mesmo nível.
– Claro. Você sabe que pode me dizer qualquer coisa.
– O que você lembra sobre aquele último Halloween na faculdade?
– Você era a chapeuzinho vermelho mais sexy de todos os tempos. E eu era uma lenhadora, pronta pra te salvar dos lobos maus. – rio e ela força um sorriso.
– Éramos boas nisso. Proteger uma a outra dos lobos.
– Ainda somos.
– Eu revi Gavin neste ano e me lembrei de como eu me joguei sobre ele aquela noite.
– Ele partiu seu coração por causa de uma outra garota.
– É. E foi por isso que eu fui dançar com o amigo padre dele no bar.
A própria menção desta história me embrulha o estômago. Me lembro de como Erin ficou inconsolável depois de ter sido rejeitada por um babaca que só sabia puxar o saco de Mason Chadwick.
– Mas, Lia, o que mais você se lembra?
– De nada, Erin. Eu bebi meu peso em vodca aquele dia. Odeio vodca até hoje por causa disso.
Ela faz uma expressão estranha e indecifrável. Erin nunca trouxe esta história à tona e eu preferi deixá-la enterrada porque não quero acreditar que ela queira sofrer novamente por Gavin.
– Eu também não lembro. – seus olhos parecem perdidos. – Eu tento, mas queria que você me dissesse que fizemos pra preencher minha memória.
– Eu transei com Mason em seu quarto e você foi pra casa. – quero concluir o assunto.
– Certo. – ela suspira.
Quero que ela se convença que foi isso, porque não posso contar que meus pesadelos tem o rosto de Gavin Linden em flashes piscantes que não consigo definir desde quando nos encontramos no bar este ano. Eu disse a Tyler que não sabia por que odiava Gavin, e não foi uma mentira completa. A intensidade é o que não sei explicar, e foi piorando cada vez que ele aparecia em Safeword.
Eu nunca esqueço um rosto. Mas no Gathering eu não reconheci o zumbi que me abordou com tanta intimidade. Eu odeio Gavin por ter machucado Erin, mas não quero que ela se lembre disso, revivendo os motivos pelos quais ela jurou que não ia mais gostar de ninguém de forma romântica.
– Gavin está morto, Erin. – e espero que possamos enterrá-lo aqui e agora.
Ela arregala os olhos numa surpresa.
– Morto, morto?
– É. No lugar mais quente do inferno.
– Espero que não, Lia. Senão vamos encontrá-lo novamente por lá qualquer dia.
Eu rio da piada, garantindo meu lugar no expresso direto para onde habitam os demônios.
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Safeword
RomanceQuando o detetive Tyler McKenzie é chamado para investigar um homicídio parecia que nada poderia ficar pior em sua vida. Como ele mesmo vai descobrir, as aparências enganam, e as coisa sempre podem piorar. Ele entra no submundo do sexo em Chicago, a...