Capítulo 21

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Tyler

Acordo perdido, mas com uma estranha sensação de descanso. Eu não sabia mais o que era isso há alguns dias. Deve ser este o tipo de paz que Italia me diz sentir depois que descarrega suas energias agredindo gente em Safeword. Exceto que eu bati em Erin, e isso foi realmente, fodidamente, excepcionalmente bom.
Primeiro porque Lia está certa, alivia o fardo de coisas que estão dentro de nós. É como praticar uma atividade física para amenizar o estresse. Depois, eu me sinto mais capaz e poderoso do que nunca. Ver o corpo marcado de Erin me excitou, deu uma sensação de superioridade que me fez entender que eu posso sim tratar as pessoas como Italia trata. Eu achava que não era do meu feitio. Ledo engano. Gostei de ser um sádico dominador muito mais do que eu deveria, e entendo muito mais o lado psicológico das pessoas que eu prendi até hoje.
Para dominar alguém é necessário que haja um enfatuamento de postura. O mesmo acontece para cometer um crime, porque quem o faz tem a prepotência de se sobrepor não só à vítima, como também às leis e à ordem.
Não mencionei Clark para Lia. Não quis estragar nossa noite, embora algo em mim saiba que é muito antiético que eu esteja sobrepondo meus desejos pessoais à investigação de dois homicídios cruéis, ainda mais porque ela é a principal suspeita. Suspiro profundamente num bocejo e não reconheço o quarto. Eu me lembro vagamente de como vim parar nele, completamente exausto de sono, bêbado pela segunda noite consecutiva e sobrecarregado de sensações violentas e reconvínheis.
Nos flashes da minha memória, eu me lembro de Italia sobre mim, quase posso sentir o gosto de seus dedos na minha boca e ver seu sorriso pela luz fraca. A procuro ao meu lado, mas suspeito que se ela tivesse dormido comigo, minha noite teria sido interrompida por seus pesadelos, como nas outras vezes. Puta merda, como meu corpo dói, até meu pau dói numa sensação latejante.
Me enrolo em uma lençol elegante e ando pela casa gigantesca, pelo menos tentando achar alguma roupa que sirva em mim antes de ir embora. Desço as escadas e à minha direita está a porta que levava ao salão da loucura da noite anterior. O ambiente está silencioso e sem sinais dos pervertidos em couro e acessórios de tortura.
– Tyler McKenzie! – a voz grossa é amigável, assim como a face do gigante que me interpela antes que eu abra a porta.
Me viro para Greg, o “amigo” de Italia. Já entendi que é a casa dele.
– Desculpe por ter dormido aqui. Onde está Lia? – ele faz um sinal e o sigo pela imensa sala de jantar.
Começo a ficar com frio, muito frio, e isso transparece no meu corpo arrepiado. Ele me dá minhas roupas, dobradas cuidadosamente e aponta uma cadeira para que eu me sente assim que me troco em um banheiro do andar. Não recuso o café da manhã e Greg se senta comigo. Ele tem uma barba comprida e escura, os cabelos têm as pontas descoloridas e ele é imenso, do tipo assustadoramente imenso. Não consigo nem imaginar o que ele faz pra ser rico deste jeito, mas ele parece capaz de acender um charuto com uma nota de cem a qualquer momento.
– Ela foi trabalhar. – ele diz se encostando na cadeira para me observar melhor.
– É uma boa ideia. – olho ao redor e lembro que deixei o celular no carro. Foi uma boa estratégia, ou teria perdido o aparelho junto com a minha sanidade.
– Ainda é cedo, até mesmo para a polícia. – ele dá um sorriso.
– Qual é seu relacionamento com ela? – pergunto tão sério quanto posso.
Apesar do tamanho, Greg é um poço de simpatia. Tanto que ele cruza os braços e dá uma gargalhada espontânea.
– Ah, caralho. Eu sabia. – sua voz é alta e divertida. – Victor me deve algum dinheiro agora.
– O que é tão engraçado?
– Você gosta da Viúva, Mckenzie. – ele estica o braço e me bate no braço como se fôssemos parceiros de algum jogo qualquer.
Seu comentário me incomoda profundamente, mas tem uma verdade intrínseca. Eu gosto de Italia, não deveria, não poderia, vou queimar no fogo do inferno por isso, mas gosto. Em vez de me defender, eu resolvo me resignar no que é evidente.
– Eu vi o jeito como você olha pra ela. Como a segurou ontem. Viu seus olhos enquanto suas mãos prendiam o quadril dela e a puxavam pro seu pau. Eu vi sua cara de satisfação e vi quando você precisou se sentar depois do orgasmo que ela te deu. Tem certeza que quer rir de mim por gostar dela? – recosto o corpo na cadeira certo que converso com Greg de igual pra igual.
– Eu gosto dela, parceiro. Ela é uma foda deliciosa e surpreendente, apesar de ontem ter sido uma quebra de regras. Mas você está envolvido, enciumado e cheio de perguntas “como é seu relacionamento”. Que porra é essa? – ele ri divertidamente.
– Eu só quero saber onde estou pisando, Greg.
– Com Italia? Ou você está pisando em ovos ou na merda, meu amigo. – Greg se levanta até o bar e serve uma dose de qualquer bebida que me enjoa o estômago.
O cara está suado, como se tivesse acabado de se exercitar, e vai beber. É como se eu tivesse ligado o interruptor de sandices na minha vida, onde nada parece o que é, e ao mesmo tempo tudo parece do avesso.
– Reconfortante. – a ironia me transborda e recuso quando ele me oferece o copo. – Qual regra foi quebrada ontem?
– Eu e Italia. – ele prende os cabelos no topo da cabeça com um elástico. – Erin e Italia.
A mera lembrança me causa uma excitação colossal a ponto de precisar respirar fundo e pausadamente para evitar que meu pau se anime.
– Como assim você e Italia foram uma quebra de regras?
– Ela só me procura pra dor e não pelo prazer, parceiro. – ele toma mais um gole e suspira. – Houve uma época que a gente trepava como coelhos, mas evoluímos para uma dinâmica sem sexo. Até ontem pelo menos.
Ele dá um sorriso que faz sua expressão se aliviar. Fico fodido de raiva por tê-la jogado nos braços dele. Ou melhor, no mastro de hastear bandeiras que o sujeito tem no meio das pernas. Filho da puta, ele não podia estar mais feliz com isso. Eu conheço o tipo de saudade que Italia deixa de seu sexo alucinante. Greg devia carregar isso com a intensidade do tempo que não se aproximou de Lia. Eu podia me rasgar de ódio, mas respiro fundo e tento focar no outro lado da conversa. Que ela o procura para dor.
– Você que a amarra com cordas?
– Shibari, meu amigo. É uma arte.
– Eu nunca entendi nada de arte. – ironizo.
– É uma imobilização capaz de ativar tanto a sensibilidade que eu posso fazê-la gozar sem encostar um dedo em seu corpo.
Ok, isso é ridículo, agora ele está só se exibindo.
– Então por que ela parecia tão fora do ar depois? – ele levanta as sobrancelhas pra mim. – Sim, eu a vi na mesma noite, o corpo todo marcado, o rosto inchado de choro e a atitude desconexa.
– Italia não se excita com a submissão. A cabeça dela não aceita e quando ela se força a isso é como se estivesse se punindo. Por isso não trepamos, ela geralmente está abalada física e psicologicamente quando termina e não necessariamente disposta a sexo. Já eu adoro ver cada pedaço da pele macia dela espremida entre as cordas. Ela aguenta com uma resistência impressionante.
– Quanto mais escuto estas coisas, mais vontade eu tenho de pagar terapia para todos vocês.
– Terapia? – Greg ri do meu comentário genuinamente.
Ele se levanta e me convida para um passeio ao lado da casa onde a festa aconteceu. Fico meio envergonhado por ser o único que ultrapassou o final da festa, mas ele é um bom anfitrião. Quando abre as portas que cruzei há algumas horas atrás eu ainda sinto o cheiro de roupas de vinil, couro e sexo.
– Isso é terapia, McKenzie. – ele abre os braços no meio do salão imenso. – É um estilo de vida, é uma forma de diversão, mas também serve para aquietar os demônios que todo mundo tem. Quando Italia machuca você, qual é a sensação?
– É enlouquecedor enquanto acontece, mas depois clareia minha percepção. – respondo andando com ele pelo lugar. Parece bem maior com a luminosidade e sem montes de pessoas pelo chão.
– Aí está sua terapia. Italia está interessada em te mostrar. Aproveite. É algo raro.
– Eu sei, a Viúva Negra não repete os parceiros. – reviro os olhos.
– Isso é idiotice, uma personagem dela. Italia não é uma mulher para amar, mas ela tem um lado carismático além de toda loucura e precisa de tudo que qualquer pessoa precisa, Tyler. Eu mesmo casaria com ela em dois segundos caso ela baixasse a guarda comigo, mas ela já tem um cara pra essa parte sentimental.
Eu preferia que Greg tivesse me batido. Na cara, com sua mão que parece uma raquete de tênis. Ou que ele me amarrasse as bolas com suas cordas de bondage. Acho que doeria menos do que ouvir “Ela tem um cara.”. Como assim? Que filho da puta é esse que vive nas sombras de uma mulher como ela?
Eu vi Lia nos últimos dias e semanas mais do que a mim mesmo no espelho, e ela nunca mencionou cara nenhum. Gregory observa a minha reação e dá uns tapinhas pesarosos em minhas costas.
– Gosto de você, McKenzie. Então aqui vai outro conselho, não se envolva. Italia dá atribuições bem específicas para as pessoas em sua vida. Eu sou o terapeuta dela. O “cara” é o supridor de romance. Victor é o amigo incondicional. Você é o desafio dela. – ele parece ter uma análise precisa da interação de Italia com todos, menos com Erin, porque ela é de fato a única pessoa que Lia não pode objetificar. – Ela é como é.
“As coisas são como são.”.
Entendo isso. Tenho isso tatuado no meu braço, caralho. Mas a verdade é que não me importa como Italia é, e sim POR QUE ela é assim. Eu agradeço o conselho, o café e a festa e antes de sair da mansão de Greg, reservo tempo para mais uma pequena especulação.
– Você fez alguma festa assim em novembro?
– Fiz. – o gorila aguenta o frio no peito nu, me fazendo sentir um fiapo de homem diante de tanta testosterona.
– E como foi?
– Lia trouxe um convidado. Um mauricinho empoado que não aguentou metade das coisas que ela fez com ele. Ela estava possuída pelo diabo aquele dia.
– Você se lembra quem era o convidado?
– Gustav, Greyson... Algo assim.
– Gavin? – sugiro e ele faz uma expressão assertiva na hora.
– Isso mesmo. Ela o humilhou absurdamente e ele fugiu como uma garotinha. – Greg ri novamente. – Embora tenha sido divertido de olhar, Lia se sentiu péssima depois.
– Que dia foi a festa?
– 19 de novembro. – uma semana antes de Gavin morrer. Isso explica as marcas nos pulsos e tornozelos dele, mas não a bola entalada em sua garganta.
Quase pergunto se Greg tem as duas bolas no lugar, mas não quero espantar sua disponibilidade em gostar de mim.
– Quando diz que Lia se sentiu péssima, é porque ela disse algo sobre ter humilhado Gavin?
– Não foi necessário dizer, McKenzie. Eu a deixei por três horas de ponta cabeça nas cordas e ela pediu mais.
Novamente eu preferia que ele tivesse me batido. Que caralho de efeito destrutivo Gavin tem em Italia, suficiente para fazê-la querer sofrer assim? Eu me preocupo menos com os caras que morreram do que com o que está matando Italia pouco a pouco.
No caminho do distrito eu penso em Erin. Italia foi genial em cuidar que eu a conhecesse num ambiente onde ela não podia falar ou ser ela mesma. Como submissa, Erin ficou quieta e subserviente o tempo todo. Estou lidando com uma mulher diabolicamente inteligente, e isso me irrita ao mesmo tempo que me fascina.
Sanchez estranha minhas roupas pretas, já que fui direto para o trabalho. Não posso me dar o luxo de chegar atrasado e parecendo um louco estando em período de condicional investigativa. Desta vez minha arma e distintivo ficaram no carro junto do meu telefone e assim que me sento na mesa encaro Rafaella.
– Gavin Linden e Clark Dickens eram amigos de faculdade. O pessoal da informática recuperou no computador de Gavin uma pasta com fotos deles da época. Adivinha quem aparece bastante nelas? – pela diversão e sadismo na voz, suponho que seja Lia.
– Você está morrendo de vontade de me contar. Então diga, Lella.
– Sua amiga. – ela triunfa.
– Isso prova o que? Que eles se conheceram? Já sabemos disso. – abro as imagens no meu computador após inserir uma senha.
As fotos são de um bando de jovens se divertindo, como geralmente ocorre em festas de faculdade. Italia aparece sempre com Erin e com um rapaz que parece não conseguir manter as mãos afastadas dela. Suponho que seja Mason, de quem a própria Italia falou em depoimento.  Reconheço facilmente Clark e Gavin, embora outra figura frequente nas fotos ainda não tenha sido mencionada. Um rapaz que sempre aparece ao fundo, ou meio deslocado.
– Quem é este? – aponto para a tela conforme Rafaella vem atrás de mim na cadeira.
– Marcus Sinclair. – ela diz. – Ele era do time de futebol americano com Mason. E este é Mason Chadwick. – ela aponta para o homem que na foto divertida está com os dentes no ombro de Lia. É exatamente quem eu suspeitava.
– Temos que conversar com estes dois, oficialmente, em depoimento. Está claro que o motivo que está matando as pessoas nesta foto aconteceu nesta época. – concluo.
– Obviamente. Mas temos que trazer Italia Bianchi novamente. – ela me olha séria.
– Estou de acordo com você, mas eu gostaria de ter algo mais palpável antes disso. Italia foi a Safeword no dia que Clark foi morto, no mesmo dia que a interrogamos. Precisamos saber exatamente que hora ela saiu.
– Isso é fácil, basta um telefonema, Tyler. – ela pega o telefone e aperto o botão que o desliga.
Só falta Rafaella me bater, porque só o seu olhar já é um insulto.
– O que está fazendo, Ty? – ela fala num tom furioso.
– Eu estava lá também, Lella.
Ela coloca a mão na cabeça e sopra o ar decepcionada. Imagino em quanto problema eu estaria se ela soubesse que passei a noite no apartamento de Italia e estava com ela ontem. Esfrego o rosto pensando no que fazer e Rafaella toma fôlego para dizer qualquer coisa que eu não presto atenção. Me levanto em direção ao escritório do Dr. Newman, do outro lado do prédio.

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