Capítulo 3

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Chicago, novembro.

Tyler

A empresa onde Gavin Linden trabalhava é uma gigante renomada do mundo farmacêutico. O sujeito cuidava da parte fiscal e dos tributos, um trabalho chato pra caralho, burocrático e minucioso. Eu torceria pra morrer caso tivesse uma ocupação tão pacata como a dele. O homem que me apresenta todos os pormenores era gerente de Gavin, e parece consternado com a perda do funcionário. Ele não poupa elogios a Linden, dizendo que era um dos melhores advogados da empresa, sempre pontual, diligente e responsável.
Todos com quem eu converso parecem chocados que o colega esteja morto. Ele não tinha inimigos, era adepto de um bom mocismo impressionante e parecia extremamente solícito. Eu sempre desconfio dos tipos perfeitos demais.
Todo mundo tem esqueletos no armário. TODO MUNDO. Alguns só escondem melhor que outros. Eu só preciso saber em que armário procurar.
A família não conseguiu explicar se Gavin poderia ter inimigos. Mas geralmente pais e irmãos só fornecem boas referências sobre seus mortos. Encaro mais uma vez o rapaz que trabalhava ao lado de Gavin e ele parece entalado com alguma coisa, embora não seja algo físico como o que sufocou o colega de trabalho. Eu conheço uma pessoa engasgada em suas próprias palavras de longe.
Quando o gerente se afasta para buscar um café, que eu aceito oportunamente, me aproximo do rapaz.
– Se você se lembrar de qualquer coisa sobre o Sr. Linden, pode me ligar. – ofereço meu cartão.
– Foi realmente um acidente? – ele me encara.
– A princípio estamos considerando como um acidente.
– Então por que as perguntas? Como ele morreu?
– Ainda faz parte do sigilo. – fecho a expressão.
– Gavin sempre foi ótimo, um cara como tudo que você ouviu até agora. Exceto que isso mudou um pouco no último mês.
– Desde quando?
– Não sei dizer exatamente. Talvez desde o começo de novembro. Ele se atrasou algumas vezes. Chegava cheirando bebida e parecia cansado, pelo menos uma vez na semana. – ele fala como se estivesse confidenciando algo muito importante.
– Estamos na última semana de novembro. Isso durou o mês inteiro?
– Sim. Eu cobri algumas reuniões por ele. Cheguei a pensar que ele tivesse algum problema com álcool e drogas. Ele parecia meio perturbado, mas estranhamente feliz.
Não faz muito sentido. Eu faço mais algumas perguntas, mas ele já me contou tudo que sabia. Eles eram colegas de trabalho, não exatamente confidentes. Preciso então conversar com amigos pessoais de Gavin, meu próximo passo, e também aguardar o que os peritos podem dizer sobre o homicídio. Porque foi um homicídio, tenho certeza disso.
Recolho a sacola com os pertences pessoais de Gavin, retirados de sua mesa pela perita que me acompanhou na visita, e voltamos à delegacia. Rafaella está em seu computador analisando novamente as imagens de segurança do prédio.
– Alguma novidade? –  sento em sua mesa e ela se estica na cadeira, exausta como eu.
– O prédio tem uma outra entrada. –  ela suspira. – Nenhuma câmera na porta e as câmeras das escadarias não funcionam.
– Que conveniente. –  meu desânimo é aparente.
– Pois é, aparentemente só os funcionários utilizam as escadas.
– Rafaella, eu tenho um mau pressentimento sobre isso. São coincidências demais e todos os fatos parecem meio estranhos...
Mal termino de concluir e nossos telefones vibram ao mesmo tempo. Olho a tela e em seguida encaro Rafaella, que se levanta rapidamente.
– Fale mais sobre fatos estranhos, Tyler. – sua voz é irônica e a sigo no caminho dos laboratórios.
A legista nos recebe com um laudo completo sobre a autópsia de Gavin Linden, embora os exames toxicológicos demorem mais para ficar prontos. Ela nos guia por gráficos e fotos que explicam que ele morreu por privação de oxigênio, realmente engasgado com algo. É então que sua expressão se intensifica.
– Você conseguiu recuperar o que estava na garganta de Linden, Dra. Mirren? – Sanchez pergunta fazendo algumas anotações.
– Sim. Eu mal posso esperar para ver a cara de vocês quando souberem o que é.
– Doutora, você entende que é uma legista, qualquer coisa que você diz já é meio assustadora.
A Dra. Mirren ri discretamente. Deduzo que ela gosta do status que acabei de atribuir a ela.
– Um testículo. – ela fala apertando um botão que mostra uma bola cárnea na tela.
– Mas que porra... – é só o que sai da minha boca. Rafaella está boquiaberta.
– O pior não é isso, detetives, o testículo em questão, é humano.
Sanchez me olha incrédula. Que tipo de pessoa faria um cara engolir um testículo? Eu sinto um breve enjoo com a reconstituição da cena na minha cabeça. Parece que a família de Gavin e seus colegas estão redondamente enganados. Ele tem pelo menos um inimigo por aí.
– O testículo é dele? – pergunto certo de que a Dra. Mirren adoraria continuar nos chocando.
– Não. Os dele estão intactos.
– Alguém cortou as bolas de um cara para alimentar outro. – Sanchez simplifica. – Isso é doente.
– Tem como saber de quem é o testículo? – pergunto ainda meio chocado.
– Estamos rodando o DNA para cruzar com os bancos de dados. Mas é uma possibilidade remota a não ser que o dono da bola tenha uma ficha criminal, um emprego público ou tenha fornecido DNA voluntariamente para exames.
– Em resumo, se for outro certinho como Gavin Linden, nunca o acharemos.
– Uma coisa por vez, McKenzie. – Sanchez me freia.
– Ainda precisamos aguardar o resultado do exame toxicológico. Mas também encontrei marcas nos pulsos e tornozelos, que sugerem que ele foi amarrado.
– Alguma outra coisa que sugira tortura? – minhas mãos se esfregam instintivamente.
– Não. Quando saírem os outros exames eu aviso vocês. Só achei que gostariam de saber efetivamente a causa da morte.
– E olhar pra nossa cara quando contasse que foi um testículo. – Sanchez chacoalha a cabeça e ri.
– Isso também. – a legista corresponde o sorriso.
Um arrepio percorre a minha espinha. Amarrado, sabe-se lá em qual condição de consciência, um homem engole um testículo de outro e morre sufocado. Caralho, é uma forma doente de desencarnar. E pior, agora eu preciso entender o que aconteceu com Linden e saber quem é o homem com uma bola a menos.
Olho para o relógio e dou um suspiro. Estou atrasado novamente para minha consulta com o Dr. Newman, o psicólogo da força policial de Chicago. Sanchez me olha inquisitiva, arqueando as sobrancelhas negras e bem marcadas.
– Pode ir. – ela diz apontando a porta assim que o elevador se abre.
– Obrigado, Sanchez. Fico te devendo uma papelada. – digo apressado.
Não é que eu adore fazer terapia. É que todo futuro do meu trabalho depende do parecer do estoico Dr. Newman sobre minha saúde mental. Isso começou há pelo menos seis ou sete meses quando eu matei um homem a sangue frio.
Eu e Rafaella estávamos investigando a morte de um garoto de dez anos em um complexo habitacional da região metropolitana. À parte do envolvimento com o tráfico do próprio garoto, descobrimos que o pai era uma figura importante na distribuição de drogas da região. Eu devia ter esperado pelo reforço do pessoal da divisão de Narcóticos.
Mas tente raciocinar razoavelmente com a imagem de uma criança feita de peneira pelos tiros de uma semiautomática. Eu não consegui. Estourei a porta do galpão onde o sujeito estava e ele fugiu.
Sanchez o perseguiu correndo comigo e ele a nocauteou com uma ripa direto na cabeça. Eu perdi o juízo e atirei nele. As circunstâncias foram explicadas e eu fui afastado por um mês, retornando somente com a condição de fazer acompanhamento psicológico por um ano e numa “condicional” atada ao laudo do Dr. Newman sobre minha capacidade mental.
Separado da minha esposa e investigado por má conduta, como exatamente eles esperam que eu me sinta sobre minha vida? É óbvio que eu vou me sentar na poltroninha de tecido em frente ao coroa de cabelos brancos e continuar achando que a minha vida é uma bosta.
– Ótima, doutor! – respondo quando o Dr. Newman pergunta “Como está sua semana?”.
– Quantas horas por noite você está dormindo? – aposto que ele está escrevendo “Mentiu sobre a semana” naquele caderninho.
– Seis.
Ele me encara por cima dos óculos.
– Quatro mais ou menos. – confesso.
– Tem visto Sasha?
– Estamos separados. Isto implica que eu não posso vê-la, doutor. – um pouco de humor, quem sabe o anime, mas ele permanece impassível.
– Detetive McKenzie, eu acho que você sofre de estresse pós-traumático, desde sua época no Iraque. Não é tão incomum em quem esteve na guerra. Isso tem trazido consequências para sua vida atual. Sua raiva não é manejada. Seu temperamento é introspectivo.
– Em resumo, eu sou maluco?
– Não, em resumo, você é como uma bomba relógio. Só Deus sabe quanto tempo vai demorar até você explodir. – ele limpa a garganta.
– Uau, você sabe mesmo animar um cara, Dr. Newman. – dou uma risada irônica e cerro os punhos.
Não é exatamente um bom prognóstico.
– Detetive McKenzie, é uma constatação vaga. Você dissocia sentimentos. Os confunde frequentemente. Enquanto não estiver disposto a falar profundamente sobre as suas questões, eu não vou poder ajudá-lo realmente.
– Eu não sei o que dizer. – me levanto num ímpeto da poltrona.
Eu sei o que dizer. Mas qual seria o parecer dele sobre mim caso eu dissesse toda a verdade? Se eu confessasse sentir raiva, cansaço o tempo todo e às vezes, nos piores dias, realmente considerasse enfiar uma bala na minha cabeça?
Ele provavelmente me afastaria do cargo. E eu não tenho mais porra nenhuma na vida além desse trabalho e os quebra-cabeças que eu resolvo nele pra me sentir útil.
– Que tal exatamente o que está pensando agora?
– Eu vi coisas, Dr. Newman, que nenhum homem consegue ver e continuar a vida normalmente. Eu vejo coisas todos os dias que me fazem questionar o tipo de gente que vive neste mundo. – minha mandíbula trava em ódio.
– E como você continua vivendo normalmente, Tyler?
– Eu não continuo. – agito os braços sentindo um nó na garganta. Puta que pariu só me falta chorar.
– Você está vivo, Tyler. De alguma forma está, embora agora tenha admitido que não de forma normal.
– Você não sabe como é. Você não tem uma porra de ideia de como é sair de casa e não saber se vai voltar vivo. Ou se você QUER voltar vivo. – eu grito com o velhote com lágrimas cruzando a minha bochecha até a barba.
Ele não se abala com meu chilique. Eu desabo o corpo na poltrona novamente e ele escreve. Tenho vontade de arrancar o caderninho da mão dele e rasgar, jogando as folhas pro alto enquanto quebro seu lápis no meu joelho, como um graveto seco de outono. Obviamente eu não faço isso. Ele já conseguiu atestar que eu estou desgraçadamente perdido. Se eu agredi-lo, posso me aposentar amanhã mesmo.
– Isso foi um progresso. – ele conclui.
Eu limpo o rosto violentamente.
– Com qual frequência você pensa em morte, Tyler?
– Todos os dias. Trabalho na divisão de Homicídios.
– Estou falando da sua morte.
Eu suspiro.
– Realmente não quero falar sobre isso.
– Sobre o que você quer falar?
– Me pergunte algo, doutor. – me encosto e cruzo as pernas.
– Como está sua vida sexual?
Eu rio ironicamente. O velho não deve ter uma ereção há uns quinze anos e quer falar comigo sobre isso. Eu tenho vontade de enterrar meu rosto nas mãos e ficar quieto. Mas vou perder meu “progresso”.
– Inexistente. – simples assim.
– Você experimentou problemas relacionados ao estresse. – ele desvia o olhar pras folhas em seu colo. – Como está agora?
– Não saberia dizer. – pronto. Lá se vai meu progresso com a expressão horrorizada dele.
Eu tive problemas sérios que afastaram Sasha de mim, como alienar completamente a parte emocional do sexo. Ela se sentia usada como uma válvula de escape pro meu corpo, como se eu não me preocupasse com o prazer dela. Então eu falhei algumas vezes. Em outras terminava cedo demais.
Isso tudo me deixou amedrontado em transar com qualquer pessoa.
– Tyler, você tem 40 anos. É imperativo que tenha uma vida sexual ativa. Isso contribui para manter a sua mente mais saudável.
– Rafaella Sanchez me disse ainda hoje que eu preciso transar, doutor. Sem ofensas, mas eu não preciso de um psicólogo pra este tipo de conselho. – passo a mão pela cabeça e ele finalmente dá um sorriso tímido.
– Vamos abordar isso com mais profundidade na próxima sessão. – ele promete.
– Mal posso esperar. – falo com ironia.
Não era bem isso que eu tinha em mente pro meu Natal, discutir com o Dr. Newman a vontade do meu pau de funcionar ou não funcionar.
Saio do consultório e ligo o celular. Ia tomar outra anotada com cara feia no caderno do velho se ele me visse fazendo isso. De acordo com ele, eu tenho um apego patológico ao meu trabalho que obstrui a minha capacidade de vivenciar experiências individuais. Sabe Deus o que isso quer dizer.
Abro as mensagens de Sanchez e passo pelas fotos enviadas pelos peritos. Um monte de coisas pessoais de Gavin Linden não me chamam tanta atenção quanto um cartão todo preto com escrita em vermelho metálico: Safeword.

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