Capítulo 14.

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Confesso que estou extremamente exausto. Os últimos dias não têm sido nada fáceis. Sinto que a qualquer momento vou entrar em colapso, caso não me der, nem que seja, algumas horinhas de descanso.

É isso que faço. Assim que Rocco vai embora, repetindo as recomendações de segurança para me precaver de possíveis surpresas desagradáveis; desabo na cama. Com os lençóis ainda bagunçados, ajeito-me no travesseiro, de barriga para baixo, e fecho os olhos, suspirando fundo.

O mundo pode ruir enquanto durmo que, definitivamente, não vou me importar. Rocco e eu passamos horas arrumando a bagunça e matutando, e meu amigo me aconselhou a tentar relaxar para não virar um paranoico com mania de perseguição. E ele tem razão. O desespero não vai me ajudar a descobrir quem é o culpado. Preciso de sensatez e argúcia para desvendar este mistério, e manter a cautela acima de tudo.

{...}

Acordo, e a primeira coisa que confiro são as horas no meu celular. Ainda tenho um tempinho até às sete, que é o horário que se inicia meu expediente no restaurante.

Remexo-me na cama, espreguiçando-me. Ainda que, não tenha dormido por longas horas, o sono mostrou-se bastante revigorante, o que é ótimo, por sinal. Às vezes, acontece de dormirmos muito e acordarmos mais cansados do que quando fomos.

Maria não deu nenhuma notícia até agora. Espero, intensamente, que esteja tudo bem e que ela tenha enfim resolvido suas diferenças com a irmã, embora minha intuição avise o contrário. Opto por não contá-la sobre a invasão. Ela tem questões demais para solucionar, e a última coisa que desejo é sobrecarregá-la com as minhas.

Confiro alguns e-mails e mensagens, já me recusando mentalmente de responder quaisquer que sejam. Particularmente, não sou adepto das relações virtuais, como muitos hoje em dia. Mesmo que as ligações se tornaram escassas, eu ainda as prefiro, mas somente para marcar encontros pessoais, ou por extrema necessidade. Segundo J.j é só uma desculpa que eu arranjei para não admitir que passo de um antissocial convicto. Vamos combinar que; face a face não é tão mais interessante que uma troca desesperada de visualizações e respostas? Prefiro o amparo de um olhar, e o calor de um abraço. Não que a comunicação constante seja superficial, levando em consideração as verdadeiras intenções dos envolvidos e os quilômetros que os separam. O fato é que; a tecnologia deve nos servir, e não nós a ela, como vem acontecendo. Há pessoas que estão tão preocupadas em se manterem conectadas que, se esquecem que tem uma vida fora da tela. O resultado disso é, a distância entre seres que deveriam interagir diariamente.

Divagando nesses pensamentos triviais, meu estômago anuncia que não comi mais nada após o rápido café da manhã no hospital. Sou obrigado a me levantar e procurar algo decente para me saciar. No entanto, não encontro nada satisfatório. É óbvio que mesmo com a ajuda de Rocco, não conseguimos ajeitar todas as coisas nos seus devidos lugares, e como fiquei vários dias fora de casa, não comprei nada e o que tinha aqui acabou estragando. Decido ir até o food truck japonês a duas quadras daqui, qual se localiza mais especificamente numa das praças bastante movimentada do bairro, e peço um yakisoba no capricho.

Sento-me numa das mesas simplórias, disponíveis para os clientes, e degusto o alimento fumegante.

Enquanto como, observo as pessoas ao meu redor. Crianças brincam na grama, livres, felizes, e me recordo com pesar da minha infância. Eu deveria perdoar meu pai por tanta ignorância, afinal o rancor só faz mal a mim mesmo. Ele continua mantendo sua vidinha, com a mente fechada, e sequer deve se lembrar que eu existo. Contudo, sinto falta de ter tido o carinho paternal. Até mesmo meu irmão, quem eu admirava tanto, me virou às costas quando resolvi revelar que me identifico como homem. Se eu não podia ser pelo menos respeitado, o mais certo que fiz foi me afastar definitivamente deles. E, agora, aqui estou eu, realizando mudanças significativas em mim e em minha vida, sem precisar da aprovação de ninguém, exceto a de Maria. Quanto a minha namorada, tenho esperança de que ela me compreenda em algum momento, e pare de tentar me fazer mudar de decisão sobre as cirurgias, coisa esta que jamais vai acontecer. Só desejo, sinceramente, que isso não interfira na nossa vida conjugal.

Almas Dançando ( TRANS/BI/POLI)Onde histórias criam vida. Descubra agora