Capítulo 33.

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(Maria)

Parece que estou vivendo um pesadelo terrível. Nesse momento, eu preferia que realmente se tratasse apenas de um sonho ruim, porque assim eu teria como acordar e voltar para minha realidade feliz. Realidade essa que desabou na minha cabeça quando tive certeza que Yan estava tentando me enganar.

Como ele pôde mentir para mim? Até quando ele achou que sustentaria essa mentira?

Não posso perdoá-lo. Eu abandonei tudo por ele. Briguei com minha irmã, saí do emprego que eu adorava... Me sacrifiquei como eu jamais fiz ou farei por ninguém. E é assim que ele me paga.

Infierno! – dou um grito sentindo uma dor me dilacerando por dentro como se rasgasse minha pele e me deixasse na carne viva. Encosto na parede e me deixo cair sentada.

Logo agora que vencemos a primeira etapa da competição, ele tem que estragar tudo com essa maldita ideia de se operar.

Eu o odeio! – chuto as bancadas de madeira do closet, de onde há dois minutos eu havia arranjado energias para juntar meus pertences dentro das malas, que achei não precisar usar tão cedo – exceto pelas viagens que planejamos juntos ou quem sabe a final em Miami...

Eu não sei o que mais me magoara, o fato dele ter escondido coisas tão relevantes de mim, ou a cirurgia em si. Por mais que eu tente, essa situação ultrapassa os limites da minha compreensão. Juro que não consigo entender porque Yan precisa se mutilar para se sentir bem com seu  próprio corpo.

Dios! Eu não estou sendo muito hipócrita em exigir dele algo que eu sequer posso fazer? Nesses últimos anos tudo que eu tenho feito é renegar minha silhueta, é me machucar em nome da magreza por medo de ser rejeitada, por receio de ter o mesmo fim que minha mãe obtivera. Eu estou errada em comparar nossas difuldades? Estou equivocada por motivá-lo a não prender-se em padrões?

Ambos estamos doentes... De formas diferentes, mas estamos... Eu não sei se posso me orgulhar de estar consciente da minha doença, porém, talvez seja melhor para ele não ficar. É difícil admitir para mim mesma que o que faço para me manter magra não é certo, nem saudável, muito menos recomendável, no entanto, não consigo fazer diferente nem lutar contra. Me desespero só de me imaginar gorda de novo e passando pelo mesmo sofrimento que experimentei na infância e na pré-adolescência. Assim, de alguma forma, é onde me sinto segura. E se Yan não foi capaz de me salvar de mim mesma, seria impossível que eu pudesse fazer o mesmo com ele. Por falta de tentativas de ambas as partes eu sei que não foi. Talvez este fim fosse inevitável desde o início e insistimos em uma ilusão.

Espero que ele não se arrependa amargamente do que está prestes a fazer. Mas de uma coisa eu sei: não estarei aqui se isso acontecer. É demais para mim, foge das minhas capacidades psicológicas. Se ele quer se autodestruir que faça isto, mas comigo bem distante! Eu só queria mostrar para ele que não precisa agir como eu para ser feliz e se sentir realizado consigo mesmo, porque tem a mim que o ama desse jeito.

Sinto uma pontada no peito do lado esquerdo. Eu não posso mais voltar atrás. Acabou tudo; nós, a dança, nossa amizade, a competição, meu sonho de ser uma bailarina reconhecida pois eu nunca mais vou encontrar alguém que dance com a alma, como ele, para ser meu parceiro. Tenho que me conformar. Rosa tem razão. Eu não sou mais criança. Eu estava vivendo uma utopia, eu fui tola em acreditar que pudesse fazer Yan mudar de opinião por minha causa. Ele não me ama como diz. Porque se isso fosse mesmo verdade, ele estaria aqui agora, abraçando-me, dizendo que nada é mais importante para ele que ver nós dois bem e juntos.

Recolho meus cacos interiormente e me levanto. Preciso ir embora antes que ele volte. Eu não sei para onde Yan foi, mas não quero estar aqui quando ele chegar. Se eu olhar para o rostinho perfeito dele sou capaz de fraquejar e eu não devo ser fraca. Não tem lugar nesta droga de mundo para covardes e eu não quero ser mais uma exilada depois que lutei tanto para me estabilizar.

Evitei dobrar as peças de roupas, para não perder muito tempo e joguei-as bagagem a dentro. Pego o restante dos meus objetos, ajeito-os desleixadamente e sigo para a sala. Fecho meu casaco. A madrugada está fria, e eu ainda estou com o figurino com o qual  me apresentei. Dou uma última olhada pelo apartamento. Respiro fundo e me vou, batendo a porta atrás de mim com força, olhando sempre para frente.

Só não desço as escadas correndo, porque as malas estão pesadas. Assim que chego na rua, aceno para um táxi e penso por um segundo.

Mesmo sentindo-me humilhada, decido voltar para casa da minha irmã. Poderia pedir auxílio ao Frank. Muito gentil, certamente ele me receberia com muito carinho, atenção e zero julgamentos, mas ainda ficaria próxima do Yan e, tudo o que eu mais quero agora é ir para o mais longe possível dele.

Depois de colocar minhas bagagens no porta-malas, o motorista me cutuca, uma vez que eu estava perdida em meus pensamentos.

– Moça? Podemos ir?

Assinto.

Entro no carro, seguida dele, e falo o endereço.

Falta pouco para amanhecer quando chegamos em frente a casa da minha irmã.

Suspiro por um instante fitando a entrada em penumbra.

Pago a corrida e saio com o coração quase saltando pela minha garganta.

O taxista, muito solícito por sinal, deposita as malas na varanda, despede-se e entra no carro. Me limito a lhe lançar um sorriso fraco para agradecê-lo e assim que ele parte, subo os degraus e com a respiração já falhando, toco a campainha por duas vezes, e espero com o rosto provavelmente inchado de tanto chorar.

É Manolo quem atende. Meu cunhado fecha o robe, num gesto de respeito, visto que usa apenas uma cueca samba canção e uma camiseta, e me cumprimenta com um sorriso compreensivo.

Minha irmã surge atrás dele e questiona quem é a essa hora da manhã, quando me vê, abre a boca num grande ar de surpresa. Olha de mim para as malas, simultaneamente, e ilustra uma expressão de vitória. Felizmente nada é dito da parte de ninguém, e principalmente dela. É óbvio que ela deseja intimamente jogar na minha cara todos os conselhos que havia me dado, mas por algum motivo, opta por se calar, como conheço a irmã que tenho, com certeza ela o fará em uma outra chance. Graças a Deus. Eu não estou numa posição favorável neste instante, e ela parece no mínimo respeitar, ou só está satisfeita por sua praga ter se concretizado.

– Manolo, pode levar essas malas para o quarto da Maria? – pede apenas. Manolo concorda com um meneio educado. – Seu quarto está como deixou, eu não me atrevi a mudar nada. – avisa passando o braço em torno do meu, para me conduzir até o mesmo.

Escuto Manolo fechando a porta e vindo atrás de nós.

Sol aparece na soleira da porta do quarto dela e corre até mim, pulando no meu colo. Acordei até a coitadinha.

– Tia! Eu senti tanta sua falta! — declara beijando minha bochecha.

– Eu também minha pequena... — retribuo apertando-a de encontro ao meu peito. Isso me consola momentaneamente. Amo essa garotinha. Ajudei Rosa a criá-la até o dia que deixei tudo pelo Yan. Revivo toda a dor do término e tenho que conter o pranto. Necessito arrancá-lo de mim. Não temos mais solução e insistir nisso é masoquismo. Temos formas distintas de enxergar as coisas e não há consenso.

– Agora está tudo bem, Sol – minha irmã garante alisando o cabelo da minha sobrinha e lhe dando um beijo na testa. – Maria voltou para ficar, não é, maninha?

Balanço a cabeça positivamente, ignorando a ironia em seu tom.

– É, Rosa. Para ficar! – confirmo com a alma em pedaços e o orgulho ferido. Me sinto envergonhada, mas vou superar, assim como fiz com todo o resto, pretendo fazer o mesmo com Yan.

Almas Dançando ( TRANS/BI/POLI)Onde histórias criam vida. Descubra agora