Capítulo 12.

346 39 19
                                    

Depois de passar três dias no hospital, para acompanhar de perto a estadia de Maria, finalmente consigo respirar aliviado. Tive uma pequena crise de ansiedade, e foi inevitável fumar um cigarro na tentativa de relaxar, e empanturrei-me de cafeína para me manter acordado e com energia o suficiente para lidar com a situação complexa. Práticas essas que minha psicóloga reprova veemente. Segundo Doutora Phillips, os vícios não são nada mais que a maneira mais fácil que nossa mente encontra de fugir momentaneamente de nossas dificuldades íntimas, mascarar e enfrentar a realidade como esta se mostra. Contudo, ela não me recrimina em nenhum momento, afinal é muito difícil levarmos uma vida inteiramente saudável considerando nossas fraquezas psíquicas. Ninguém é perfeito, e a graça de viver consiste em evoluir com as experiências pessoais que o contato social nos impõe. Caso contrário, que sentido teria nascermos prontos?! Antes de conhecer a profissional de saúde mental — com a qual faço acompanhamento psicológico depois que me entendi como um homem trans — eu ouvi de um sábio que; tudo nos é permitido, mas nem tudo nos convêm. Mais tarde fui saber que se trata de uma passagem bíblica que, acreditando ou não, tem fundamento bastante lógico. O que soa irônico, uma vez que não sou religioso. Suas prevenções são apenas alertas para o cuidado redobrado que preciso manter com meu corpo, por causa dos efeitos e várias reações negativas da testosterona no meu organismo.

Enfim, estou mais tranquilo agora que minha namorada recebeu alta, após realizar exames mais aprofundados e não ter obtido nenhum diagnóstico negativo além dos quais o exame de urina e sangue haviam constatado. O médico, cuja nacionalidade é brasileira, de nome Raul — muito simpático por sinal — garantiu que a gastrite detectada seria amenizada com inserção de líquidos e comidas leves, evitando frituras, alimentos picantes, e afins. Tratei logo de me responsabilizar pela recuperação de Maria, que — graças aos Céus — está disposta a se cuidar daqui para frente, só para continuar participando da competição de salsa. Não a desmotivei. A razão, ainda que rasa, é o impulso significativo que ela precisa no momento. Todos nós necessitamos de um motivo para seguir adiante, este, consequentemente, se torna o combustível que não nos permite desistir, e felizmente, ela encontrou o dela.

— A Rosa vai me esganar... — comenta, enquanto saímos do hospital, comigo enlaçado na sua cintura esguia.

— Você devia ter avisado para ela que ficou internada durante esses dias — repreendo.

— Não, Yan. Nós já conversamos sobre isso, e você me prometeu que não vai contar nada à ela sobre meu estado de saúde. Não quero preocupá-la e desejo não ser censurada e julgada como ela sempre faz comigo...

— Está bem — suspiro, fazendo sinal para um táxi. — Invente uma desculpa. Diga que tivemos que viajar para encontrar um dançarino em Santa Mônica, que nos deu uns toques para o torneio.

Ganho um beijo na bochecha.

— Você pensa em tudo, não é?

— Não concordo em mentir para Rosa sobre algo tão relevante, mas...

— Ah, Yan, — ela me interrompe — eu sei, mas já está na hora de me desgarrar da Rosa, sou bem grandinha, e preciso conquistar minha independência.

— Vendo por este lado... Concordo com você.

— Então? Vou passar na sua casa, tomar um banho e irei embora, ok? — diz, assim que um táxi disponível finalmente surge e estaciona para nós.

Abro a porta para Maria  e consinto apenas com um meneio. Preciso encontrar uma forma de conversar com ela sobre seu transtorno alimentar, mas não sei como iniciar este assunto e pra falar a verdade, não sei nem o que dizer sem assustá-la e fazer com que se feche mais. Não será nada fácil convencê-la de que precisa de ajuda psicológica e principalmente admitir que está doente. O médico pediu muito cuidado da minha parte porque é uma questão delicada.

Assim que chegamos em frente ao meu prédio, pago a corrida e descemos. Nos deparamos com Rosa, encostada no portão, olhos febris, testa franzida, sacudindo a cabeça energicamente em nossas direções. Maria segura meu braço com força. Ela fica pálida e fria de repente, enquanto sua irmã mais velha vem até nós, com os lábios trincados de ira.

A mulher agarra minha namorada pelo cabelo, e lhe transfere um tapa tão forte no rosto, que o som da pancada dói em mim. Apresso em impedi-la de continuar a agressão, segurando-a pelos braços.

— Me solta, Mei, agora! — exige, se contorcendo para se livrar de mim. — Maria merece levar uns bons porretes! Você sabe como me deixou preocupada? Eu te procurei em hospitais, na delegacia, e nada de vocês aparecerem! — brada, olhando fixamente para a garota chorosa na nossa frente, com as bochechas rubras num misto de indignação, constrangimento e raiva.

— Foi um imprevisto. Tivemos que viajar às pressas, e nenhum de nós teve como avisá-la. — omito, torcendo para que ela acredite e se acalme.

— Irresponsabilidade suas! — esbraveja — Custava me ligar? Custava?

— A culpa é minha... — invento. — Nos distraímos, e ambos esquecemos o telefone. Não sabíamos seu número de cor. Foi só isso.

— Mas, é um absurdo mesmo! Quanta falta de consideração — remexe-se mais uma vez, e eu afrouxo as mãos, para que se solte. É inútil continuar prendendo-a. Voltarei a agir, se ela ousar encostar em Maria outra vez. Violência não resolve e só gera revolta. Perdi a conta das vezes em que fui espancado por meu pai para ser mulher e “honrar meu papel feminino” na família. O resultado disso, foi me afastar para sempre deles. Não era obrigado a viver no meio de tanta intolerância.

— Basta, Rosa! — as lágrimas inundam o rosto crispado de Maria. — Chega de me tratar feito uma menininha inconsequente! Me deixa respirar, pelo amor de Dios.

— É isso o que você é! Uma garota ingênua e avoada! Quer que eu comece a te tratar diferente? Então haja como uma mulher de verdade!

— Por que não subimos para meu apartamento? — sugiro, fitando as pessoas que passam devagar para observar a briga. — Este não é lugar para assuntos íntimos...

— Maria vai vir comigo, Mei. Precisamos ter uma longa conversa.

— Não vou. Vou ficar aqui com o YAN — provoca, enfatizando meu nome.

Rosa me lança um olhar desdenhoso, e volta a fitá-la.

— É melhor você vir, se não quer que eu faça um escândalo, e te leve arrastada pelos cabelos! — ralha.

— Maria, — me aproximo dela e a beijo na testa para lhe transmitir segurança. — Vai com a Rosa. Ela está certa. Vocês precisam conversar e se entenderem de uma vez.

— Mas, Yan...

— Vai ser melhor. Chega de confusão.

Ela arfa, demonstrando exaustão.

— Está bem — concorda contrariada, revirando os olhos.

— E não se esqueça de tomar os remédios, hein? — lembro baixinho em seu ouvido, para que Rosa não nos ouça, e depois beijo seu pescoço.

Ela assente, e caminha em seguida para o carro da irmã. Rosa vai atrás. Observo-as entrarem no veículo e sumirem na esquina, assim que este dá partida.

Respiro fundo, passando as mãos nervosamente pelo cabelo. Sinto-me impotente, e não sei até que ponto posso me envolver na relação conturbada das duas. A verdade é que, só Maria pode resolver esta situação.

Ajeito a mochila nas costas, e subo para minha casa. Estou extremamente cansado, e não posso perder um quarto dia de serviço essa semana.

Quando destranco a fechadura, e giro a maçaneta abrindo a porta, tenho uma surpresa desagradável. Meu apartamento está todo revirado: móveis fora do lugar, louças quebradas, e armários escancarados. Vou até o quarto e constato que o mesmo tornado passou por aqui: o colchão está fora do lugar, as roupas espalhadas, e as gavetas abertas.

Suspendo as mãos, e as deposito na minha nuca, dando lentamente uma volta para avaliar a dimensão da desordem.

Puta que pariu.

Que merda sucedeu aqui — ou melhor — Quem diabos fez isso e por quê?

Almas Dançando ( TRANS/BI/POLI)Onde histórias criam vida. Descubra agora