Capítulo 17.

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*** Vídeo com conteúdo didático

Sim, eu tive que usar meu atraso como desculpa para me esquivar do interrogatório de Maria sobre minha família. Não, que não esteja realmente em cima da hora, porém a circunstância caiu como uma luva para eu fugir do questionário da minha namorada. Eu não desejo falar sobre meus pais e muito menos do meu irmão. Ele era a única pessoa que eu esperava que me compreendesse e me abandonou quando eu mais precisei dele. Admito que ainda estou ferido, e só me sinto a vontade para proferir algo a respeito, quando estou nas sessões grupais, onde eu sei que jamais serei julgado. Hoje terei um belo assunto para uma dinâmica - sendo irônico, dou uma risadinha nervosa. - apesar de eu ficar mais desinibido na terapia individual, uma vez por semana, com o auxílio da assistente social e o psiquiatra.

Às vezes - quase sempre - me sinto pressionado e constrangido com as invasões de Maria na minha privacidade. Ela quer controlar até mesmo minha mente, e ainda que eu lhe desse liberdade para isso, não poderia. Apesar de estar me surpreendendo, com relação ao fato de me respeitar, e me desejar como um homem trans; e nosso sexo ganhar cada vez mais intimidade, sinto que ela tem que parar com esse comportamento impertinente, que tanto me irrita e incomoda, antes que me sufoque.

Desço do ônibus, atravesso a Rua, caminho apenas um quarteirão e finalmente chego na clínica. Adentro-na, cumprimentando a todos que conheci nestes dois anos de acompanhamento psicológico. Prática esta que desejo manter mesmo depois das cirurgias. Afinal, trabalhar o psíquico é sempre válido, seja qual for nossas dificuldades.

Ao me aproximar da sala habitual, onde nossos encontros acontecem, distraído em meus pensamentos conturbados, acabo colidindo com alguém. Paro. É uma mulher mais velha que eu, muito... interessante - se é assim que posso dizer - de acordo com minhas primeiras impressões. Os papéis que ela carregava estão espalhados pelo chão, graças ao nosso choque como num daqueles filmes clichês.

Me recupero do transe causado pelo brilho de sua beleza e autoconfiança emanada através de sua aura, e me apresso em agachar, recolhê-los e ajeitar dentro da pasta tão vermelha quanto a cor de seu cabelo.

- Desculpe-me pela distração... - meneio a cabeça, me sentindo um parvo desastrado.

- Não se preocupe... Acontece - sorri gentil. - Tenho que ir, - avisa olhando para o próximo corredor - estou atrasada. Obrigada.

- Não tem o que agradecer. Desculpa mais uma vez.

Ela sorri novamente, mas sem mostrar os dentes. Sai andando rápido, e some na esquina.

Coço a nuca desnorteado. Que mulherão da porra!

Lembro onde estou, o que estou fazendo aqui, e confiro as horas no relógio de pulso.

Vou praticamente correndo para a sala. Entro nesta, sem sequer pedir licença e saudar meus colegas, vislumbrando somente a cadeira que estou acostumado a utilizar na hora que fico no local, e me sento assim que a alcanço.

Ouço uma tosse repreensiva, e olho. É ela: a mulher do corredor.

- Bom dia... Seja bem-vindo... - sorrio envergonhado. Devo ter corado. - Como eu ia dizendo... Sou Megan Parker. Vou substituir a Senhora Phillips. Ela teve problemas pessoais e está de licença. Ela me deixou a par de tudo - conta, analisando os papéis da pasta que derrubei há dois ou três minutos - Estudei cada um dos casos e, então... - volta a nos olhar, e seu par de esmeraldas reluzentes estacam precisamente em mim. Desvio constrangido. - tenho certeza de que vamos nos dar muito bem. Vamos continuar de onde ela parou, está bem? Não teremos nenhuma dificuldade...

Os pacientes assentem, inclusive eu. Não tenho dúvidas alguma disso. Descarto o que eu havia planejado, na vinda para cá. Não me atrevo a abrir a boca. Prefiro ficar ouvindo até me acostumar com a presença da nova psicóloga.

Almas Dançando ( TRANS/BI/POLI)Onde histórias criam vida. Descubra agora