➵ 24 | Desequilíbrio

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Acordo com um cutucão. Olívia tem o telefone-celular estendido numa chamada aberta que parece ser para mim. Pego o aparelho e minha cabeça rodopia. Dormi demais.

— Alô? — minha voz está grogue e sonolenta.

Beverly? Onde você tá? Eu acabei de saber o que aconteceu. Como você está? Por que você não me ligou e avisou, Beverly? Eu fiquei sabendo por Joffrey que viu a notícia no jornal local e me avisou, meu Deus!

Não me surpreende. Numa cidadezinha como Skarye Fall qualquer coisa de diferente que acontece se espalha rapidamente feito uma praga descontrolada e vira até matéria de capa.

— Mãe, se acalme. Eu estou em casa e estou bem. Não te avisei porque não queria estragar seu casamento. — Tento tranquilizá-la.

Rachel entra no meu quarto e senta-se na cama. Coloco a chamada no viva-voz.

Querida, estou indo embora agora. Não sei como pude acreditar na desculpa de Olívia que você não estava se sentindo disposta. Não vou nem para o aeroporto.

— E você fez certo, mamãe. Eu juro, juro que estou bem. Não pode desmarcar a lua de mel por minha causa!

Beverly, como você quer que eu viaje sabendo que a minha única filha quase morreu durante minha festa de casamento?

— Mãe, vocês vão ir passar um tempo incrível em Londres! Não ouse cancelar por minha causa.

Eu não posso viajar e te deixar aí sozinha.

— Hermione. — Olívia pega o telefone e coloca na orelha. — Beverly não está sozinha, ela nunca esteve. Não precisa se preocupar com isso. Se não for, vamos ficar todas chateadas.

Peço o telefone de volta.

— Mamãe, vá ao aeroporto. Eu vou lá te encontrar antes que o voo saia e assim você pode ter certeza de que ficarei bem, certo? E nada de mas, dona Hermione. Se você não viajar eu vou me sentir culpada.

Demora para ela ceder.

Tudo bem.

— Nos vemos já já, mamãe.

Encerro a chamada. Coço os olhos.

— Por quanto tempo eu dormi?

— Algumas horas. A polícia ligou. Eles estão designando mergulhadores para ir em busca de Flynn no lago e já noticiaram para a família o acontecido. Seu telefone vai ser liberado até o fim da semana.

— E Ryven?

— Foi embora com Mason quando ele veio nos trazer. Aliás, peguei seu carro.

Afundo no travesseiro.

— Nossa, nem acredito que esse pesadelo foi real...

— Eu também não, Bevs. Mas veja pelo lado bom: Flynn nunca mais vai te atormentar.

Arqueio uma sobrancelha.

— Rachel! — eu e Olívia exclamamos.

Ela dá de ombros. No fundo, sei que está certa.

Chegamos no aeroporto por volta de nove da noite. Recebo um abraço tão forte e apertado da minha mãe e de Marcos que acho que os dois quebrarão minhas costelas. Como meus amigos — e namorado — estão lá, mamãe aproveita para agradecer Ryven por tudo que ele fez por mim.

— Você está bem mesmo, filha? — Hermione Anderson aperta minhas bochechas, olha cada centímetro de pele livre e tenta procurar ferimentos.

Felizmente os arranhões e cortes mais graves estão escondidos pelo casaco e meu cabelo já não tá tão ruim — só porque o prendi num coque. A maquiagem também serviu para disfarçar muitas imperfeições e me dar um aspecto saudável.

— Estou ótima, mãe.

Ela não desiste. Até poucos minutos antes do embarque, uma hora depois e mil perguntas de como estou, não deixa o receio. É com muito custoso para que aceite, mas quando o faz, me sinto aliviada. Espero que não pense mais nisso, que Marcos consiga distrai-la. Quero superar logo esse capítulo tenebroso da minha vida.

A história do meu sequestro não só é0 noticiada com urgência no noticiário de Skarye Fall como também estampa as capas do jornal na semana seguinte. Pego meu celular de volta ao menos. O caso é dado por encerrado após todas as provas apresentadas. Minha maior dificuldade está na faculdade. Quase não sei como lidar com toda a atenção. Ganho folga por alguns dias. Na quinta-feira será o funeral de Flynneas Colleman. O céu já está escurecendo quando boto meu casaco por cima do vestido longo e escuro. Na abadia de Skary Lake não há muitos corpos. Pouca gente se deu ao trabalho de vir. Uma mulher de cabelos castanhos presos num coque elegante está ao lado do caixão de madeira escura, os olhos azuis escuro marcados por olheiras profundas e uma expressão melancólica no rosto. É a mãe de Flynn.

— Oi, Ellen.

Ellen Colleman me olha. Faz tempo que não nos vemos. Nossa relação era consideravelmente boa para sogra e nora.

— Beverly. — Em vez de me culpar pelo ocorrido ela me abraça. — Quanto tempo, querida. Como você está?

— Bem. Estou bem, Ellen.

Há algo em sua expressão que denuncia que ela sente a vontade de me dizer algo sério.

— Bev, eu quero te pedir desculpas pelo Flynn. O que ele te fez... — o resto da frase morre nos lábios marcados pelo tempo. — Eu realmente sinto muito.

— Agora isso não importa mais, Ellen. Eu o perdoo, de verdade. — Não vejo sentido em guardar mágoas de alguém que já se foi.

Ela lamenta.

— Acho que devia ter tratado a doença dele com mais seriedade. Foi culpa minha...

Suspiro.

— Ellen, ele me disse que não estava tomando os remédios...

Vejo-a secar o rosto.

— Não estou falando da bipolaridade, Bev. Flynn descobriu um tumor no cérebro incurável a algumas semanas. Isso o deixou desequilibrado. — Vejo-a engolir em seco. — Ele recusou o tratamento.

Fico em choque. Deus, isso explica muita coisa.

— Eu sinto muito, Ellen. Sinto tanto... Do fundo do coração, espero que você se recupere dessa tragédia.

— Obrigada. — Ela diz. O senhor Colleman surge e me cumprimenta.

Retribuo o sorriso triste dos dois. Meus olhos se fecham instantaneamente quando me sento na madeira fria do banco segundos mais tade. Eu começo rezar pela alma de Flynn. Sei que ele me fez muito mal, mas eu não o odeio. Além disso, o perdão é um sentimento belo e espero que ele encontre sua paz onde quer que esteja.

Depois do funeral eu vou para casa, não disposta a enfrentar o enterro. Quando abro a porta, me deparo com duas malas grandes e escuras no tapete do chão.

— O que está acontecendo aqui? — indago.

— Eu esqueci de avisar... — Olívia começa. Uma mulher sai da cozinha. Os cabelos negros caem graciosamente até o meio das costas no vestido longo. Os olhos negros e os ossos da face bem-marcados a deixam linda, graciosa e familiar. — A mamãe veio nós ver!

— Eu tava com saudades de vocês! — Marise Jefferson se joga em Ryven e Olívia. Depois de dois minutos e vários beijos os solta e chega em mim. Um sorriso largo brota na face iluminada. — Então você que fisgou o coração do meu menino, hein Bevs? Bem-vinda a família, minha nora. 

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