➵ 47 | Timbre familiar

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| 3 MESES DEPOIS |

Sob a cadeira do salão ajeito meus cabelos recém-cortados conforme me olho no espelho em cima da bancada. Durante a minha recuperação os fios louros cresceram muito — chegaram ao fim das costas — e agora voltei ao tamanho normal na altura das costelas.

Ah, e por falar na minha recuperação, devo dizer que foi um sucesso. A única coisa que me incomoda é não saber quem foi o doador para poder agradecê-lo. Agora — literalmente — uma parte dessa pessoa está dentro de mim.

— Pronto! Você está mais linda do que já era! — Jhonny Streep se abana. Ele é o melhor cabeleireiro que conheço, além de ter um estilo pessoal super marcante pelos lenços coloridos que adornam o pescoço esguio.

— Ficou um arraso! Eu amei. Obrigada, Jhonny.

— Fiz uma obra de arte aqui. Que bom que gostou, queridinha. Volte em breve pra eu fazer outra hidratação, sim?

— Pode deixar, Jhonny.

Depois de sair do estabelecimento com a alma — e os cabelos — mais leves, sigo ao meu apartamento. Dirijo com calma, ouvindo música retrô no rádio e aproveitando o simples fato de poder ter um momento assim depois de uma experiência de quase morte. Após o que tive, passei a apreciar todos os pequenos detalhes da vida. No apartamento sou recebida por uma chuva de elogios por parte das minhas amigas. Eu sorrio e me uno as três no sofá. Não fazemos nada além de comer pipoca e ver TV, mas para mim um programa que antes era tão simples hoje não é tanto assim. Me sinto madura e muito mais grata a tudo e a todas as pessoas que ficaram ao meu lado, principalmente a Deus por ter me dado uma chance de viver.

Passo a acordar mais cedo e mais disposta até nos domingos. Eu costumo sair para correr ou caminhar pelo bairro com fones as cinco da manhã e volto seis para aprontar para a faculdade ou fazer o café-da-manhã. Quando tudo está pronto, vou até o quarto de Rachel. Ela está dormindo de bruços. Me jogo em cima dela.

— Hora de levantar!

Minha amiga se remexe embaixo de mim.

— Vai se ferrar..., Beverly.

— Anda, eu preparei uma mesa de café da manhã superespecial. Tem tantas coisas gostosas...

Reynolds reclama.

— Então você pode dar licença de cima de mim pra eu poder levantar?

Faço que sim. Minha próxima vítima é Olívia.

— Acorde, acorde. — Balanço-a até suas pálpebras subam. — Bom dia, flor do dia.

— Que horas são?

— Quase dez da manhã. — Não são nem oito e meia. — Anda, eu fiz o café da manhã. Não vai me deixar comer sozinha, vai?

Ela nega e sai da cama para irmos até Naomi.

— Vou engordar pra caramba. Valeu a pena acordar cedo. — Rachel esfrega os olhos e afunda na primeira cadeira que vê.

— O que vamos fazer hoje? — Naomi dá uma garfada em sua panqueca com mel.

— Acho que nada. Ficar aqui e assistir filme. — Olívia coloca uma colherada de ovos com bacon na boca.

— Mas fizemos isso ontem! — Reynolds resmunga.

— Vamos fazer de novo! Amanhã tem aula e eu ainda estou com ressaca daquela festa de sexta. — Blackthorn contra-ataca.

— E eu quero descansar.

— Três a um, Rachel perdeu. — Dou o veredito final.

— Por Deus, como vocês são tão sem graça.

— Não fique assim. — Eu a consolo. Ela mostra o dedo do meio.

— Não têm nada pra comer? — grito da cozinha ao fuçar os armários e a geladeira.

Já são sete da noite.

— Não! Não fizemos compra ainda e o que tinha você usou no café da manhã e Naomi no almoço! — Rachel berra do banheiro.

Faz sentido. Vou até meu quarto e me troco. Coloco um par de short jeans pretos, camiseta regata e sandálias.

— Vou comprar alguma coisa.

— Traz calabresa e queijo. Eu cozinho. E um vinho. — Olívia pede.

Faço que sim. Como há um supermercado na rua ao lado, não demora quase nada para eu comprar o que foi pedido. Aproveito para levar o café-da-manhã do dia seguinte, assim ninguém precisa acordar mais cedo e vir aqui. Já de volta à frente do prédio, assovio um som de Alaska Willson.

— Beverly! — alguém grita atrás de mim quando piso na calçada do meu prédio.

Eu congelo. Meu corpo não se move e sinto de repente que estou sob efeito de maconha. Essa voz... Não pode ser... A última vez que a ouvi foi a mais de três meses atrás num quarto de hospital... Agora eu a estou ouvindo novamente e não é algo da minha cabeça. Espero que não seja, ao menos. Parte de mim deseja que não passe de uma miragem, que eu me vire e ele esteja atrás de mim — sei pela minha respiração acelerada e pelo coração que começa a bater mais forte. Meu corpo reconhece. Os pêlos na nuca eriçam e fico à beira de uma síncope... Esse timbre tão familiar pertence a Ryven Blackthorn. 

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