Henrique deixou seu carro e, embaixo de chuva, foi até o barranco que se formava bem à frente deles. Ele mal podia acreditar na cena que havia acontecido bem diante de seus olhos: um outro carro desceu ladeira abaixo e capotou até a estrada que ficava mais embaixo.
O Padre Júlio desceu do carro, mesmo que Henrique tivesse pedido para que ele ficasse. O homem o olhou se aproximando e depois voltou a olhar de novo para o barranco, para tentar enxergar se alguém saía do carro.
— Misericórdia! O que foi isso? O que aconteceu? — O Padre Júlio perguntou, com a mão no peito, como se estivesse prestes a ter um ataque do coração. Em seguida, levou uma das mãos à boca — Santo Cristo! O carro capotou! Devem estar todos mortos! — E se benzeu, começando logo em seguida uma oração em sussurros.
Henrique começou a descer o barranco e então o Padre abriu um dos olhos, interrompendo suas orações em sussurros.
— Sr. Henrique! Onde está indo?! Por Deus, quer ser o próximo?! O senhor nem está salvo ainda! Não faça isso!
O homem nem mesmo ouviu o que o padre dizia. Continuou a descer, obstinado, até chegar na estrada de baixo e perceber que era o carro dos Bragança. Havia o motorista, o marido e a esposa. E estavam todos mortos.
— O senhor não precisa ir comigo, Padre. Eu agradeço por trazer meu carro até aqui. Mas deve estar atrasado para o seu... compromisso com as freiras.
— Ah, fazia muito tempo que eu não pegava em um volante. Poderia ter acontecido uma segunda catástrofe. — O padre bateu na boca de leve, arrependido pelas palavras — Ah, e me desculpe por dizer que o senhor não estava salvo ainda, doutor. No momento do desespero, o senhor sabe, foi o que saiu.
Henrique lançou um olhar de canto para o homem e balançou a cabeça como se aquilo não tivesse importância.
Padre Júlio tinha a fama de ser extremamente dramático, linguarudo, além de um belo de um fofoqueiro. Ah, e, é claro, um homem de Deus.
Ele tinha uma insistência peculiar com Henrique, e particularmente o homem até apreciava e achava certa graça nisso. Aconteceu depois que o padre descobriu que ele era, na verdade, um cristão evangélico, e não católico. Desde então parece estar tentando, com todas as forças, e não com o melhor exemplo do mundo, convertê-lo.
Sua afilhada costuma dizer que os esforços do Padre Júlio se dão pelo fato de Henrique ser um dos poucos da cidade que não se confessa, logo, de quem ele não sabe sobre a vida e os piores pecados. Henrique não costuma bater o martelo sem antes ter a certeza de estar certo, mas no caso do padre ele poderia apostar que sua afilhada está certa. E acha graça dessa situação também.
— Ah, não. — O padre respondeu. — É claro que eu vou com o senhor, doutor. Pobre Ana! Oh, pobre Ana! Vai ficar arrasada. Os pais mortos... — Ele balançou a cabeça — Isso é uma tragédia. Não, não. As irmãs podem esperar. Depois o senhor me leva até lá, já que é caminho até a sua casa, não? Vamos dar a terrível notícia primeiro.
Henrique ia suspirar, mas se conteve.
— Ela precisa ir até o hospital reconhecer os corpos. Vamos dizer apenas que foi... um acidente muito feio.
— Ah, claro. Claro. Será um choque para a pobre Ana. Eu faço questão de acompanhá-la até o hospital. Coitadinha... sem nenhum dos irmãos por aqui. Quem será que virá para cuidar de tudo, ein? Porque ela mesma não vai poder, a não ser que se case. Mas os Bragança não estavam nem perto de cogitar um matrimônio para a pobrezinha e... agora ela estará nas mãos dos meninos. Não me leve a mal, são bons meninos. Digo, isso antes de irem para a Inglaterra. Por Deus, aquele lugar corrompe as pessoas. Não sabe quantos eu vi voltarem de lá bem piores, doutor...
O Delegado permaneceu quieto. Quanto a isso não poderia opinar. Se era mesmo verdade que todos os homens voltavam piores da Inglaterra, então ele foi uma exceção, mas... apenas por uma questão de necessidade.
— Deve ser Carlos. — O padre chegou à conclusão depois de pensar um pouco — É um bom menino. E não se deixou corromper, viu? — Balançou o dedo para o outro no volante — Agora quanto aos outros não posso dizer, não os vejo há anos. Ah, a Sra. Francisca sentia tanto a falta deles, e agora... — O homem balançou a cabeça e fez o sinal da cruz novamente.
Chegaram à casa dos Bragança e Henrique bateu na porta, um pouco desconcertado por estar com o padre bem ao seu lado. A chuva ainda continuava forte, e devia ser três da manhã. A criada Cristine os atendeu enrolada em um grosso roupão, mas ao ver os dois completamente ensopados ela se assustou e pediu para que entrassem no mesmo instante, antes que pudessem dizer qualquer coisa.
Henrique viu a garota, Ana Francisca, observando os dois da escada, curiosa. Ela tinha o que? A idade de sua afilhada? Certamente ele não esperava que ela reagisse de modo tão... maduro. Não que Clarisse não fosse madura, era sim. Ele no fundo esperava que ela reagisse assim caso um "acidente" viesse a acontecer com ele também.
— Onde eles estão agora? No Hospital? — A garota perguntou completamente atenta, enquanto a criada parecia chocada. — Temos que ir para lá?
— Sim. Mas, Srta. Ana... — Henrique suspirou, pensando no que dizer — é melhor estar preparada.
A garota assentiu, respirando fundo como se tentasse puxar junto com o ar alguma grama de coragem para dizer:
— Eles... podem ter morrido? É isso que o senhor quer dizer?
Henrique fez que sim.
— Ana, pobre criança, não se preocupe. — O padre estendeu a mão para ela — Estarei com a senhorita, minha querida, até o momento em que sentir que não precisa mais de mim. E Maria nos ajudará nesse momento de aflição.
— Ah, sim, padre. — A criada Cristine se mexeu como em um momento de epifania — Eu vou acender uma vela antes de irmos.
— Faça isso. E vamos rezando. — Ele apertou a mão de Ana — Não se preocupe, Ana. Vai estar forte para o que quer que tiver de enfrentar.
Ela sorriu como pode e apertou a mão dele.
— Obrigada, padre.
Henrique até ergueu as sobrancelhas, surpreso. Talvez sua afilhada estivesse errada, afinal, o padre se mostrava preocupado e gentil naquele momento. Então não poderiam descartar a possibilidade de que o homem estava mesmo tentando salvar sua alma das garras do protestantismo. E ele agradeceu a Deus por aquele homem estar ali, e em todos os lugares logo após aquilo, pois não seria um bom consolo para a Bragança, afinal, nem a conhecia. E, como o padre mesmo fez questão de enfatizar, ela estava sozinha agora, sem os irmãos por provavelmente um bom tempo, até que a notícia chegasse na Europa e eles decidissem vir.
O homem voltou para casa apenas no fim da tarde do dia seguinte, depois do tumultuado funeral do Sr. e da Sra. Bragança. Estava exausto, queria apenas um banho e dormir por dez ou onze horas seguidas. Mas Clarisse, sua afilhada, o esperava na sala e sua energia se revigorou, enfim, por algum milagre dos céus. Não era surpresa, na verdade. Aquela garota sempre conseguiu lhe arrancar forças que nem mesmo ele sabia que tinha.
Sentou-se na poltrona de frente para ela, sorrindo de modo contido por já saber o que ela ia perguntar.
Continua...
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Bragança & Cia
Romance[...como efeito colateral dessa brincadeira, eles acabam vivendo lindas histórias de amor. ] O cargo almejado por João de Matos Bragança era o de Senador, mas infelizmente ele e sua esposa sofreram um terrível acidente antes mesmo que pudesse inic...