Victor Coelho Rodrigues - Apresentação

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Victor acordava todas as manhãs na residência do Prefeito Luís Coelho Rodrigues, o Senhor Seu Pai, preparadíssimo para o terror de costume: aquele café da manhã quieto, no qual apenas assuntos políticos eram permitidos, seus meio-irmãos mudos como dois coelhinhos obedientes, e ele fingindo ler o jornal por inteiro quando na verdade estava interessado apenas na coluna de piadinhas.

— Bernardo, — Luís falou com o mais velho, ou melhor, o único filho que ele via ali naquela mesa, enquanto passava geleia em todos os cantos de sua torrada — agora que o tal do João Bragança morreu, você pode começar a se preparar para tentar o cargo de Senador.

— Imagino que sim, Pai.

Victor ergueu o olhar por cima do jornal para observar o rosto do irmão, em seguida se escondeu atrás das imensas folhas novamente.

— Pelo que eu sei apenas aquele garoto vai tentar... — O homem continuou — como é o nome dele? O Almeida.

— Antônio. — Bernardo respondeu.

— Isso. — Luís revirou os olhos e terminou de mastigar sua torrada. — Vergonha. Ele nem sequer tem carreira política, e só porque conseguiu uns amiguinhos no Rio de Janeiro acha que pode exercer um cargo dessa... classe. Você é a pessoa certa para isso. Comece a planejar sua campanha hoje mesmo. — O homem limpou a boca e jogou o guardanapo na mesa depois de se levantar. — Você, — agora, pelo tom de desprezo velado, Victor sabia que o Pai se referia a ele — se fizer outra cena hoje na prefeitura vai para a rua.

O rapaz franziu a testa, tentando se lembrar da última cena que havia feito na Prefeitura, mas não conseguiu esconder a surpresa pelo Pai ter trocado mais do que três palavras com ele em menos de um dia. Quer dizer, não foi uma troca, mas sim um despejo. Mesmo assim, de alguma forma aquilo era como uma migalha jogada ao pobre pombinho faminto de atenção paterna que Victor sabia ser. Apenas assentiu com a cabeça, observando o imponente senhor deixar a mesa de refeições.

— O que foi que eu fiz? — Ele pensou em voz alta, tentando se lembrar.

— Você se escondeu completamente embaixo da mesa e reclamou de alguma coisa. — Bernardo explicou, e exibiu um sorriso contido e curioso — Foi justamente na hora que ele passou.

— Ah, droga. — Victor se lembrou do que havia acontecido. — Como eu ia saber que ele ia aparecer bem nesse ínfimo momento do dia? Quando ele falou sobre fazer uma cena eu fiquei imaginando se não teria... não sei, bebido e aparecido ali completamente peladinho.

— Não faz o seu tipo. — Bernardo voltou para o seu próprio café.

— Beber pela manhã? Realmente. — Victor sorriu com a própria piadinha sobre fingir esquecer da parte de aparecer pelado em público — Vocês querem saber a de hoje? — Ele falou pela primeira vez com a irmã que estava ao lado do outro e comia em completo silêncio. — Vocês sabem o que acontece quando chove na Inglaterra? — Ele era o único visivelmente animado com as piadas matinais do jornal, e isso também era de praxe — Vira Inglalama.

Rosalina exibiu um meio sorriso e balançou a cabeça. Bernardo, sempre literal, demorou um segundo e depois assentiu mostrando que havia entendido.

— Bem, eu me vou. Não sintam minha falta, a noite tem mais piadinhas, assim que Vossa Majestade se retirar da mesa.

Victor pegou seu terno e passou a gola da camisa por cima, sempre levantada e sem a gravata, porque ele só era obrigado a usar aquilo quando estava no terrível lugar, exercendo cargo que seu pai o havia obrigado a assumir, depois de se formar no curso de ciências contábeis — e o leitor já pode imaginar por quem ele foi coagido em sua "escolha" de curso. Ele tinha preciosas quatro horas antes da sua sessão diária de tortura como contador na Prefeitura.

Saiu para caminhar na rua, cumprimentou a senhorinha da esquina, a fofoqueira que ficava sempre no muro para bisbilhotar, as crianças que brincavam no parquinho — e as que davam uma chance acabavam por gostar dele. Almoçava em um bar de esquina bem longe de casa, frequentado por uma classe bem diferente da sua, e não se importava por ser julgado por suas roupas de extrema classe. Antes isso do que os olhares de "lá vem o filho bastardo do Prefeito", ou então "como pode esse menino ser sustentado por ele e viver na casa com os outros filhos como se fosse um deles?". Bem, isso era apenas o que chegava aos seus ouvidos. Por suas costas mesmo ele imaginava que dissessem coisas bem piores.

Não era a pior coisa do mundo ser visto dessa forma. Como Victor mesmo costumava dizer: "O lado bom de ser bastardo é que eu não tenho uma reputação a zelar: ela já é completamente destruída". Na verdade, já estava conformado. Mas sim, isso lhe dava a liberdade, mesmo que pequena, de ser ele mesmo, algo que seu meio irmão Bernardo não podia nem nos mais lindos sonhos. Quaisquer que fossem esses sonhos, Luís apareceria com uma pequena agulha para estourá-lo e fazê-lo cair na realidade. E a realidade era uma só: todos naquela família faziam apenas o que o patriarca mandava, e nesse caso Victor estava incluso como um dos membros que devia incontestável obediência ao homem.

Nas demais coisas, ele não era tratado pelo pai como alguém que tivesse qualquer relevância para seus planos, e por isso não tinha também relevância alguma como filho. Na verdade, nem filho ele era. Nunca havia sido chamado assim, e às vezes chegava a duvidar que Luís realmente acreditasse ser seu Pai.

Bem, sem mais lamúrias sobre o inferno que vivia em casa, o rapaz partia agora para o seu terrível emprego compulsório, e se lembrava bem de que "não poderia fazer cena novamente". Acontece que o problema ainda não havia ido embora.

No dia anterior Victor se enfiou embaixo da mesa para tentar apanhar um maldito roedor que estava atrás dos seus preciosos biscoitos de gengibre, cuidadosamente escondidos na gaveta, e ainda mais cuidadosamente colocados em sua boca ao longo do expediente para que não fosse completamente consumido pelo tédio. 

Ao longo da semana ele havia percebido que os biscoitos estavam sumindo, mas não todos de uma vez, o que o fez duvidar da possibilidade de que fosse um animal. Ele passava a tarde encarando os outros funcionários das mesas em volta, tentando descobrir quem estava com cara de culpado de ladrão de biscoitos. Naquela tarde do dia anterior, no entanto, acabou chutando alguma coisa e ouviu um grunhido baixinho. Abaixou para olhar o que havia sido aquilo e encontrou o meliante: um camundongo branco. Não parecia ser rato de rua, e teve a cara de pau de morder o dedo de Victor. Foi nessa hora que ele reclamou de dor, e essa devia ser a cena que seu pai havia visto e ouvido passando por ali justamente nesse momento.

Dessa vez ele não seria ludibriado. Fez um discreto rastro de migalhas, soltando-as pela mão enquanto caminhava até o banheiro, e esperou o ladrãozinho bem ali. Não poderia ficar muito tempo sem correr o risco de ir parar na rua com uma mão na frente e outra atrás, então torceu para que...

Um barulho na privada o chamou atenção, e Victor pensou "meu deus, não é possível que esse larápio passe por esse lugar e também pela minha gaveta metendo as mãozinhas imundas nos meus biscoitos". Ele entrou na cabine e no mesmo momento alguma coisa pulou da caixa de água para o seu rosto. Era como se o bichano já soubesse quais eram as intenções dele. Começaram a travar uma guerra enquanto Victor lutava para manter-se intacto de arranhões e mordidas, e o bichano tentava fugir.

— Espera aí. Espera aí. Es---pera... — Ele conseguiu jogar o animal na pia — Calma, calma, não me morde! Está vindo alguém. — O rapaz sem nem sequer hesitou meteu a mão no ratinho e a enfiou no bolso, sorrindo cordialmente para o homem que entrou no toalete e saindo logo em seguida. Ele voltou para a própria mesa e enfiou o bichano bem rapidinho na sua gaveta, evitando os olhares que estranhavam seu comportamento que fugia do marasmo de sempre. Depois de algum tempo abriu a gaveta para ver se o ratinho ainda estava ali. É claro que estava, com uma gaveta repleta de biscoitos. Ele riu fraco e se abaixou para cochichar: — Vamos fazer um trato. Você come os dessa gaveta e os de cima ficam para mim. Combinado?

Victor ergueu a cabeça na mesma hora quando ouviu a voz do pai conversando com um outro funcionário. Ele teve que disfarçar o susto ao sentir o ratinho subindo por sua manga. Fingiu estar trabalhando até o homem passar para dentro da própria sala e olhou para o bichinho, escondido em sua roupa.

— Não gosta do Prefeito? — Cochichou e riu fraco — Compreensível. Você não é o único faminto que é afetado pelas decisões dele. Alguém bem corajoso precisa pará-lo, mas... —  olhou para os lados antes de continuar falando dentro da manga do terno — enquanto esse dia não chega nós dois ficamos bem quietinhos aqui, fingindo não existirmos.

Bragança & CiaOnde histórias criam vida. Descubra agora