— E então, vai mesmo voltar para a fazenda? Vamos ficar quanto tempo separadas? — Margô preparava seu chá com leite e algumas (muitas) colheres de açúcar.
— Eu tenho que voltar. — Ana Francisca se sentou no sofá de frente para ela e jogou as pernas para cima, aparentemente cansada — Combinei com meus irmãos de nos encontrarmos lá. Achei que seria um bom lugar.
— Ah, com certeza. — A loira fez uma careta — Longe de toda essa fofocalhada desse povo sem nada para fazer.
Ana virou o rosto para encarar Margô com um olhar irônico, em seguida riu e a amiga fez o mesmo.
— Ah, — Ela quis se defender — no meu caso é diferente. Eu posso falar sobre a vida de todos nessa cidade, mas não sou nem de longe uma pessoa insensível como esses porcos políticos que estavam no velório dos seus pais e... Ah! — Ela se ajeitou no sofá, animada — o que foi aquilo?! Theodora Duarte te dando um abraço do nada?! Eu nem sabia que vocês eram próximas, sua traíra. Por que não me contou nada?
— Porque não somos, amiga. — Ana voltou a olhar para o teto — Foi algo... surpreendente.
— Surpreendente é pouco! Eu fiquei foi de queixo caído. — Margô riu fraco e tratou de tapar a boca com sua xícara de chá.
Ana Francisca riu também, na mesma proporção, e depois suspirou.
— Ela falou coisas bonitas sobre... entender meus sentimentos e imaginar que eu devesse estar sofrendo muito. Naquele momento eu tinha muito mais raiva entalada na garganta do que tristeza propriamente dita. Foi como se... ela tivesse conseguido extrair os dois sentimentos de mim. O abraço foi para que eu fizesse uma cena de choro e, assim, quem sabe os porcos políticos debandassem dali. Deu certo.
— Deu. — Margô comentou, surpresa. — Minha nossa, amiga, ela arriscou demais. Eu mesma só teria achado a situação toda muito, muito estranha. Acho que ficaria sem reação. Na verdade, não consigo me imaginar nessa situação em que você está. Quer dizer, tenho meu pai ainda e, por mais que ele esteja sempre ocupado com os negócios das padarias ou... enfim, ocupado com outras coisas... Bem, eu o amo. Eu e você nos abraçamos quando eu a encontrei no início do velório, mas parecia tão controlada e eu não achei que estivesse precisando extravasar a raiva desse modo.
— Nem eu sabia. — Ana se sentou no sofá para olhar para a amiga — Eu geralmente não tenho dificuldade para me controlar, você sabe.
— Ah, eu sei. — Margô ergueu as sobrancelhas e bebeu mais um pouco — Você é uma dama perfeita. Mas até a mais perfeita das mulheres acaba passando pelos sentimentos que nós, meras mortais, passamos todos os dias... como a raiva.
Ana sorriu.
— Eu sinto raiva em outros momentos. Ah, mas você há de convir, amiga: aquele monte de homens engravatados rindo bem em frente ao caixão dos meus pais? É para tirar qualquer uma do sério, não importa quantas aulas de etiqueta tenha frequentado.
— Realmente. — Margô deixou de lado sua xícara e secou a boca com um guardanapo — Mas você não respondeu a minha pergunta, amiga. Quanto tempo ficaremos sem nos ver? Eu terei que passar uma temporada na fazenda dos Bragança para saber como você está? Porque sempre que fica na fazenda são meses de comunicação zero.
Ana sorriu contido e fez que não.
— Acho que vamos ficar lá somente o tempo necessário para evitar intromissões desnecessárias dos fofoqueiros da cidade enquanto vivemos nosso luto.
— E me fala uma coisa... — Margô se esticou no sofá e começou a mexer entre os potes de doces na bandeja apoiada na mesa ao lado em que foi servido o chá — como você conseguiu convencer todos eles a retornarem assim, tão depressa? Quer dizer, não tinha dito que eles deixariam para Carlos resolver tudo?
— Pois bem... eles resolveram vir. — Ana fez um bico e deu de ombros — Mas eu suspeito que Carlos os tenha convencido. Ele é bom em convencer André e Augusto. Eles estão muito confortáveis por lá, e... não sei, acho que têm a impressão de que o Brasil seria um tipo de atraso. Eu realmente achei que nem mesmo nessa situação eles decidiriam vir, afinal, nossos pais já morreram, não há mais nada que eles possam fazer a respeito. Vir para cá não vai mudar nada.
— Isso é verdade. — Ela desistiu de pegar qualquer um dos doces da bandeja. — Amiga, que calamidade esses biscoitos, ein? Parecem ser da semana passada.
— Ah, — Ana não havia reparado nem mesmo que a criada havia deixado uma bandeja com chá para Margô — mil perdões, amiga. Cristine chegou a me perguntar se deveríamos nos preparar para receber alguém por aqui, talvez querendo prestar condolências. Sinceramente não tive mais cabeça para formalidades depois daquele velório completamente desnecessário, e disse a ela que não aceitaria receber ninguém.
— Ah, imagino que eu não esteja inclusa nessa lista de "ninguéns", não é?
— É claro que não. — Ana sorriu — Eu fico feliz com a sua visita. Andava ficando louca com meus próprios pensamentos. A pobre Cristine já não deve aguentar mais me ouvir atormentando-a pela casa, e nem mesmo consegue fazer as próprias tarefas porque eu fico alugando a companhia dela.
A loira se levantou e esticou a mão para Ana Francisca.
— Vamos.
— Para onde? — A Bragança se levantou e arrumou a saia amassada.
— Ora, para onde mais? Para a cozinha fazer biscoitos decentes.
Ana sorriu.
— Sabe que doces não são o meu forte.
— Mas são o meu. Vai dar certo dessa vez. Já disse, da última o problema foi que o fermento estava velho demais e já não funcionava.
— Eu não acho que tenha sido isso. — Ana passou o braço pelo dela enquanto as duas já se dirigiam para a cozinha — Acho que está mentindo para mim, já que suas rosquinhas ficaram cheias e apetitosas, enquanto as minhas pareciam... — Ela riu — não vou nem dizer o que pareciam. E usamos o mesmo fermento!
Margô riu.
— Amiga, você está bem? Realmente bem? Quer dizer, pode desabafar comigo se precisar. Por Deus, foi algo muito repentino, e... desde então eu sinto como se estivéssemos fingindo que nada de tão ruim assim aconteceu. Eu a vejo forte e inabalável para lá e para cá, mas... a Duarte conseguiu te arrancar lágrimas muito profundas e agora eu fiquei pensativa quanto a isso, e com um aperto no peito com certeza.
— Ah, — Ana apertou seu braço contra o dela como se estivesse se aconchegando — sempre concordamos que você era a sensível da dupla, e eu a resistente, não?
Margô sentiu uma lágrima brotar pelo olho e sorriu pela fala da amiga.
— Não, não. — Ana sorriu — Não pode chorar. Dessa vez eu estou precisando que você seja a durona, casca-grossa.
— Ora, então se é assim... — Margô secou os olhos e soltou o braço dela vendo que haviam chegado na cozinha. Sorriu, puxando o saco de farinha da prateleira — vamos ver se consegue se lembrar dos outros ingredientes para fazermos biscoitos de leite. Vamos! Vamos! Se apresse! Eu sou muito exigente com ajudantes na cozinha.
— Sim, senhora. — Ana correu para a mesa e pegou a garrafa de lata, com uma expressão sugestiva ao mostrá-la para a amiga.
— Ahá! Muito fácil se lembrar do leite quando os biscoitos são de leite, não? Vamos, pegue os outros ingredientes, ajudante! Mas, escuta? Vai mesmo trabalhar com esse vestido chique e caríssimo sem nenhuma proteção? Onde estão nossos aventais, ajudante?
— Sim, senhora! Eu vou buscar agora mesmo. — Ana sorriu e foi até a dispensa onde também guardavam os panos e os aventais.
Margô riu um pouco ao ver que um criado as olhava ligeiramente assustado, sem saber como reagir à nova patroa e sua amiga mexendo nas coisas da cozinha. Ela piscou para ele e fez com a mão para que saísse e não se importasse com aquilo.
— Ah! No fim é provável que vocês tenham que limpar uma grande bagunça por aqui, viu? — Falou para o criado antes que ele deixasse a cozinha.
Em seguida prendeu o cabelo e arregaçou as mangas, pronta para a missão de melhorar ao menos um pouco os dias melancólicos de sua amiga.
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Bragança & Cia
Romance[...como efeito colateral dessa brincadeira, eles acabam vivendo lindas histórias de amor. ] O cargo almejado por João de Matos Bragança era o de Senador, mas infelizmente ele e sua esposa sofreram um terrível acidente antes mesmo que pudesse inic...